Resenha:
Desvãos Cioran ou Mansarda em Paris com Vista para a Morte (de Matéi Visniec, É Realizações, 2012)

Rodrigo Menezes

Um passeio por Cioran

Diz-se que certo dia, no início da década de 90, Cioran saiu da editora Gallimard e, pretendendo voltar parar casa, se esqueceu de onde morava. Era o Alzheimer que chegava para precipitar seu crepúsculo em direção ao fim – ele morreria meia década mais tarde, num hospital em Paris. Eis o ponto de partida de Desvãos Cioran ou Mansarda em Paris com Vista para a Morte, peça teatral escrita por Matéi Visniec, dramaturgo romeno nascido em 1956 e exilado em Paris em 1987, onde vive até hoje.

Desvãos… é uma homenagem a este pensador da dúvida e do desengano conhecido por seu pessimismo corrosivo e por sua ironia implacável. Marcado por uma atmosfera onírica que beira o surreal, a peça é um conjunto de cenas-fragmentos que passeiam através de momentos e situações entre a vida parisiense de Cioran e seus anos iniciais na Romênia. Dos personagens aos lugares emblemáticos em que se passam as situações, a estória é perpassada de elementos simbólicos cuja função é colocar em cena diversos aspectos do pensamento e da vida do nosso protagonista. O espaço exterior, no qual se desenrolam os acontecimentos (os encontros, os desencontros, as caminhadas, os devaneios), parece ser uma figuração concreta do universo simbólico de Cioran, um mundo labiríntico onde coabitam memórias do passado, fantasmas do presente e diversos elementos que tecem a relação entre a trajetória biográfica do autor e o seu pensamento.

Em busca da memória perdida

Na primeira cena, um Cioran perdido, com sintomas de senilidade já avançada, pede informações a um cego com um telescópio no meio de uma praça em Paris: o romeno se esforça para se lembrar do local e do horário exatos em que deve encontrar Ionesco e Eliade, com os quais será fotografado (trata-se de uma foto famosa, em preto e branco, em que os três aparecem, de pé, conversando). A impressão é de que, nos diálogos com este e outros personagens (há um segundo cego), o romeno está o tempo todo dialogando consigo mesmo, como se locutor e interlocutores fossem as personificações das diversas vozes que compõem a polifonia do pensamento cioraniano. Digno de nota é o personagem da “mulher que faz migalhas”: recurso poético com o objetivo de dar corpo à memória do protagonista, com a qual ele conversa enquanto ela alimenta os pombos no Jardim do Luxemburgo. A projeção exterior da memória como forma de simbolizar a perda progressiva da mesma, até que ela o abandone por completo para tornar-se uma completa estranha. “Está claro, minha memória, que começo a me perder da senhora… mas o estranho é que é na desordem que essa perda se dá. E esse jardim, lhe agrada? […] (Enquanto continuam a falar sem se mexer, as duas personagens começam a se afundar devagarzinho na terra. É como se estivessem sendo engolidas, de uma maneira extremamente lenta, por uma areia movediça.)”

Em outra cena, Cioran irrompe – perdido, como sempre – numa sala da Sorbonne onde um professor de filosofia cego está dando uma aula sobre ele.  “(A porta se abre. Um vento forte invade a cena e derruba uma cadeira; dezenas de páginas voam no ar. Humilde, olhar vago, Cioran entra) – Bom dia, desculpe, não quero incomodar… Procuro o restaurante, o restaurante universitário…”, o mesmo onde ele comeria de graça até os quarenta anos quando belo dia um funcionário poria fim a sua mordomia. Ao final da aula, em que é feito um resumo inspirado, mas não pouco caricatural, do pensamento de Cioran, o professor cego saca um revólver e mira contra a própria cabeça. Crítica ou ironia direcionada a um pensador que, com frequência, é acusado de ser um niilista suicida? Fica em aberto a questão.

Sempre se mata cedo ou tarde demais

A propósito, o tema do suicídio, questão central do pensamento cioraniano, entra no enredo por meio de um jovem que invade, no meio da noite, o quarto de Cioran, em sua mansarda na Rue l’Odeon, para pedir-lhe autorização para se matar. Uma alusão aos leitores que lhe escreviam para agradecer pelo fato de que seus livros lhes deram força para atravessar momentos de extremo sofrimento, muitas vezes dissuadindo-os, por um aparente paradoxo, de consumar o ato capital, quando a isto estavam pré-dispostos. Aplicando sua psicologia do desengano no caso do jovem suicida, o Cioran da peça nos faz lembrar de um aforismo dos Silogismos da amargura: “Só se suicidam os otimistas. Os pessimistas, não tendo razões para viver, por que as teria para morrer?” Partindo da premissa de que pessimismo e lucidez andam juntos, Cioran descobre que trata-se de um jovem (estudante de Letras) cujo otimismo perante a vida fora abalado por alguma amarga decepção. E recusa-lhe a autorização para o derradeiro ato: “Você não é lúcido o suficiente para morrer”, diz ele ao rapaz, que responde:

Senhor Cioran, lúcido ou não, exijo que o senhor me dê permissão para eu me suicidar. Li todos os seus livros. Sei todos de cor, estudei durante dez anos o seu pensamento, fiz um doutorado sobre o senhor. E agora, acabou, exijo do senhor um último gesto. Mê dê permissão para eu me suicidar!

Uma paixão impossível

É no escritório aonde vai para renovar sua papelada de estrangeiro que Cioran encontra novamente a “mulher das migalhas”, desta vez interpretando a balconista do serviço de imigração. Visniec aí faz o romeno confessar sua paixão secreta por Friedgard Thoma, jovem alemã que ele teria conhecido através de correspondências, e com a qual teria supostamente vivido um amor platônico. Tema delicado, uma vez que o romeno sempre se recusou a falar de sua vida conjugal. A confissão é singela, beirando o patético:

A senhora sabe que estou apaixonado? Apaixonado há dez anos? Apaixonado por uma alemã que vi na Alemanha? E que telefono para ela todos os dias, escondido, de uma cabine telefônica? Que eu sofro como o mais puro dos adolescentes cheio de espinhas na cara? […] Apaixonar-se na minha idade… Ter fantasias eróticas, na minha idade… Hoje de manhã, quis telefonar, mas me dei conta de que tinha esquecido seu nome… E, no entanto, eu a amo… eu a amo… […] Mas ela me magoou… A senhora sabe o que ela me disse, numa carta, há dez anos? Ela me disse que nossa relação não poderia ser de ordem física

O mesmo escritório do serviço a estrangeiros torna-se um tribunal digno de um romance kafkiano, onde o nosso personagem se depara com um verdadeiro julgamento sobre seu passado. Para sua surpresa, o chefe do serviço a estrangeiros apresenta-lhe um dossiê contendo todos os comentários depreciativos que fizera, quando jovem, sobre seu próprio povo e país. Acusado de “traidor da pátria” e daí para baixo, o romeno é intimado a prestar contas de tudo o que dissera e escrevera no passado.

Cioran passou seus últimos dias na ala geriátrica do hospital Broca, em Paris. Ali ele faleceria em 20 de junho de 1995, tendo perdido completamente a memória e a consciência de si. Mas antes de desaparecer para sempre no esquecimento, ele ainda resgata algumas memórias que, por aquilo que possuem de original (no sentido da origem), não poderiam deixar de figurar também como destino, como o ponto final de uma existência tão empenhada em romper com suas origens, mas que acabou a elas retornando (e ficando mais preso ainda) ao cabo de toda uma vida.

Quanto a isso, Ion Vartic, em seu Cioran, naif și sentimental, diz que o pensamento de Cioran se caracteriza por uma espécie de “metafísica da regressão” que apontaria para o passado (para a beatitude pré-consciente da vida primitiva, anterior à corrupção), e não para o futuro, como telos por excelência do ser temporal e finito que é o homem.

Regressões

Em seu esforço para não desaparecer, a memória refaz seu trajeto de vida do presente ao passado. O déjà-vu dá o tom das cenas, em que os mesmos personagens reaparecem interpretando diferentes pessoas que Cioran conheceu e com as quais conviveu ao longo da vida. Dentre elas, como não poderia deixar de ser, Simone Boué, a professora de liceu que lhe faria companhia até o fim de sua vida. A cena em que os dois se encontram talvez seja a mais comovente de toda a peça: o velho Cioran cruza, enquanto caminha pela praia de Dieppe (onde costumava passar o verão com Simone), com uma jovem desconhecida saída do mar. Ele pergunta: “Menina, me diga a verdade… Você faz parte de minha memória fragmentada? É o mar que brinca com minha memória e que me remete a alguns vislumbres do passado?” Antes de voltar para o mar, a jovem beija-o na boca e diz: “Vivemos cinquenta anos juntos. E, nas suas cadernetas, meu nome não aparece nem mesmo uma só vez.”

Viajamos no tempo e no espaço em direção a Sibiu, segunda cidade em que viveu Cioran, e onde ele começou a sofrer o grande drama de sua vida: a insônia. O velho Cioran, cada vez mais próximo do completo esquecimento, visita a si mesmo enquanto ainda é um jovem estudante de filosofia e um intelectual apaixonado, exaltado, cheio de aspirações. Ao mesmo tempo em que o autor já conhecido, na França e fora dela, por livros como Écartèlement (“Esquartejamento”) e Exercícios de admiração, regressa à sua juventude, é como se descobrisse, por detrás da névoa do esquecimento cada vez mais espessa, a presença indelével do jovem Emil Cioran sempre presente, até o final de sua vida. Todo um conflito que atravessa a trajetória biográfica do escritor romeno, marcando-a com uma ruptura radical simbolizada pelo exílio em Paris e pela adoção do francês como língua de expressão, é aqui representado de modo especialmente dramático, a ideia da divisão sendo reforçada pelo encontro cara a cara, e pelo acerto de contas, entre um jovem e um velho Cioran.

De Sibiu a Rasinari, seu vilarejo natal: eis o ponto final da estória, no qual se despede de nós a memória de Cioran. Chegado no seu destino de origem, Cioran se dá conta de que viveu quase sua vida inteira sem uma sombra. No rodapé das colinas de Coasta Boacii, onde nascera e vivera os primeiros anos de sua vida, ele reencontra seu “paraíso terrestre” da infância. Sua avó o espera de braços abertos (ela, que fora a única adulta responsável por Emil e seus irmãos, enquanto seus pais haviam sido deportados durante a I Guerra). O velho Cioran pergunta à avó, que é ao mesmo tempo uma carpideira, por quem ela chora. Ela chora por um senhor que morreu no estrangeiro.

A julgar por um pensador que, arrogando-se uma lucidez desesperada, sempre exaltou a inconsciência como o paraíso, a salvação (“a consciência é um exílio; a inconsciência, uma pátria”), não deixa de ser pertinente perguntar-se sobre a relação entre a morte de Cioran (suas causas e circunstâncias) e o modo como a questão da morte foi por ele tratada em seus escritos. Segundo Gabriel Liiceanu, a questão pressupõe que “entre o exercício do pensamento da morte e a morte em si mesma estabelecer-se-ia um vínculo, e que a morte deveria levar a marca da forma com que ele não cessou de falar dela.” (Itinéraires d’une vie: E.M. Cioran).

Cioran não poderia ter tido uma morte mais coerente com seu pensamento sobre a morte. Para o homem, animal angustiado com o absurdo da existência, atormentado pelo fundo irracional da vida e pelo nada que a habita, a memória, a consciência, o espírito, tudo isso é um fardo, potências antagônicas à vida mesma. Só os animais e as plantas conhecem o repouso, só eles estão à salvos do tremor do ser que se descobre sendo em direção ao nada. Àquele que sempre amaldiçoou a consciência, foi reservada uma morte inconsciente, esquecida. Sua tão estimada lucidez há tempos lhe havia abandonado quando ele finalmente se dissipou, demente, com o suspiro do esquecimento final. Bênção ou castigo? Não sabemos e provavelmente nem Cioran pôde ter esta certeza. Sua morte foi o único acontecimento importante em que não lhe fora possível ser o espectador de si mesmo. O exilado metafisico reencontrou enfim sua pátria.