“Retrato do filósofo cínico ou a filosofia indigente” (Michel Onfray)

Trata-se de demonstrar as grandes possibilidades do vagabundo em relação à virtude… contra a figura do sábio hierático e um tanto enfatuado, o cínico propõe a do filósofo errante. Séculos mais tarde, Cioran expressa certa simpatia por esta maneira de ser, que representa também uma proximidade com o essencial. Não possuir nada predispõe melhor a perceber em que consiste o Ser. A respeito, Cioran escreve a Fernando Savater: “Creio que chegamos a um ponto da história em que é necessário ampliar a noção de filosofia. Quem é filósofo?” E o ancião precisa: certamente não o universitário que tritura conceitos, classifica noções e redige sumas indigestas a fim de obscurecer as palavras do autor analisado. Tampouco o técnico, por mais brilhante ou virtuoso que pareça, quando se rende às retóricas nebulosas e abstrusas. Filósofo é aquele que, na simplicidade e mesmo na indigência, introduz o pensamento em sua vida e dá vida ao seu pensamento. Tece sólidos laços entre sua própria existência e sua reflexão, entre sua teoria e sua prática. Não há sabedoria possível sem as implicações concretas desta imbricação. Durante vários anos, Cioran esteve em contato com um destes homens, um vagabundo, um mendigo, que o interrogava acerca de Deus, o mal, a liberdade e a matéria. “Nunca conheci ninguém”, escreve Cioran, “tão em carne viva, tão ligado ao insolúvel e ao inextricável.” Um dia, Cioran confessou ao seu visitante que o considerava um autêntico filósofo, e desde então não tornou a vê-lo. Este episódio o fez chegar à conclusão de que o filósofo se distingue por sua “preocupação em avançar sempre a um grau mais elevado de insegurança.” Razão suficiente para excluir os proprietários de cátedras, os especialistas em discursos e autópsias estéreis, e para desclassificar os assalariados que ganham notoriedade com a mumificação dos textos ou o jargão dos especialistas. As raízes de uma autêntica sabedoria esquadrinham primeiro o ventre e depois a cabeça.

ONFRAY, Michel, “Le volontarisme esthétique” in: Cynismes. Portrait du philosophe en chien. Paris: Bernard Grasset, 1993.

Tradução: Rodrigo Menezes