“A árvore da vida” (E.M. Cioran)

NÃO É BOM que o homem se lembre a cada instante de que é homem. Debruçar-se sobre si já é um mal; debruçar-se sobre a espécie, com o zelo de um obcecado, é ainda pior: é atribuir às misérias arbitrárias da introspecção um fundamento objetivo e uma justificativa filosófica. Enquanto tritura-se o próprio eu, tem-se o recurso de acreditar que se está cedendo a um capricho; a partir do momento em que todos os eu convertem-se em centro de uma interminável ruminação, os inconvenientes da própria condição encontram-se, por uma espécie de desvio, generalizados, o próprio acidente erigido em norma, em caso universal.

Primeiro percebemos a anomalia do fato bruto de existir; apenas depois aquela de nossa situação específica: o assombro de ser precede o assombro de ser humano. Não obstante, o caráter insólito do nosso estado deveria constituir o dado primordial de nossas perplexidades: é menos natural ser homem do que simplesmente ser. Isto, sentimos instintivamente; de onde essa voluptuosidade cada vez que nos desviamos de nós mesmos para identificar-nos com o bem-aventurado sono dos objetos. Não somos realmente nós mesmos até que, face ao próprio eu, não coincidimos com nada, nem sequer com nossa singularidade. A maldição que recai sobre nós já pairava sobre nosso primeiro ancestral, antes mesmo que se dirigisse à árvore do conhecimento. Insatisfeito de si, estava-o ainda mais de Deus, que invejava sem sabê-lo; viria a ter consciência disto graças aos bons ofícios do tentador, auxiliar e não autor de sua ruína. Antes, vivia no pressentimento do saber, numa ciência que se ignorava a si mesma, numa falsa inocência, propícia à eclosão da inveja, vício engendrado pelo comércio com seres mais afortunados; pois bem, nosso primeiro ancestral estava intrigado com Deus, espiava-o e era espiado por ele. Nada de bom poderia resultar.

“Vós podeis comer de todas as árvores do jardim, mas não comerás da árvore do conhecimento do bem e do mal, pois o dia em que o fizeres, certamente morrerás.” A advertência do alto revelou-se menos eficaz que a sugestão de baixo: melhor psicólogo, a serpente saiu ganhando. De resto, o que o homem queria mesmo era morrer: buscando igualar seu Criador pelo saber, não pela imortalidade, ele não tinha nenhum desejo de se aproximar da árvore da vida, nenhum interesse por ela; disso se deu conta Yahweh, uma vez que não lhe proibiu o acesso a ela: por que temer a imortalidade de um ignorante? Mas se o ignorante comesse das duas árvores, e se ele se apossasse da eternidade e da ciência, tudo mudaria. A partir do momento em que Adão provou o fruto culpado, Deus, entendendo com que teria que se ver, perdeu o juízo. Ao colocar a árvore do conhecimento no meio do jardim, ao exaltar suas vantagens e sobretudo seus perigos, cometeu uma grave imprudência, adiantou-se ao desejo mais secreto da criatura. Proibir a outra árvore teria sido melhor política. Se não o fez, foi porque estava certo de que o homem, aspirante teimoso à dignidade de monstro, não se deixaria seduzir pela perspectiva da imortalidade enquanto tal, demasiado acessível, demasiado banal: não era esta a lei, o estatuto do lugar? A morte, por outro lado, pitoresca e investida do prestígio da novidade, poderia intrigar um aventureiro disposto a arriscar por ela sua paz e sua segurança. Paz e segurança relativas, é verdade, pois o relato da queda permite entrever que no coração mesmo do Éden o promotor de nossa raça já sentia um mal-estar, sem o qual não se saberia explicar a facilidade com que cedeu à tentação. Cedeu a ela? Buscou-a, na verdade. Já se manifestava nele esta inaptidão para a felicidade, esta incapacidade de suportá-la que todos nós herdamos. Ela a tinha às mãos, podia apropriar-se dela para sempre, mas a rejeitou; desde então a perseguimos sem encontrá-la e, mesmo que a alcançássemos, não nos adaptaríamos a ela. Que mais esperar de uma carreira iniciada por uma infração à sabedoria, por uma infidelidade ao dom da ignorância que nos outorgou o Criador? Precipitados no tempo à causa do saber, fomos imediatamente dotados de um destino. Pois somente fora do paraíso é que há destino.

Se tivéssemos caído de uma inocência completa, total, verdadeira em suma, a lamentaríamos com tamanha veemência que nada prevaleceria contra nosso desejo de recuperá-la; mas o veneno já estava em nós, mal indistinto até então, que em seguida se definiria e se apoderaria de nós para marcar-nos e individualizar-nos para sempre. Esses momentos em que uma negatividade essencial preside nossos atos e nossos pensamentos, em que o futuro caduca antes mesmo de nascer, em que um sangue devastado nos inflige a certeza de um universo de mistérios despoetizados, louco de anemia, prostrado sobre si mesmo, onde tudo se resolve num suspiro espectral, réplica de milhares de experiências inúteis; não seriam esses momentos o prolongamento e o agravamento desse mal-estar inicial sem o qual a história não teria sido possível, nem sequer concebível, já que, como ela, não tolera a menor forma de beatitude estacionária? Essa intolerância, esse horror mesmo, impedindo-nos de encontrar em nós nossa razão de existir, nos fez dar um salto para fora de nossa identidade e como que para fora de nossa natureza. Separados de nós mesmos, faltava-nos está-lo de Deus: tamanha ambição, já sonhada na inocência de outrora, como não nutri-la agora que não temos mais nenhuma obrigação para com ele? De fato, todos nossos esforços e todos nossos conhecimentos tendem a diminuí-lo, a questioná-lo, a ferir sua integridade. Quanto mais nos domina o desejo de conhecer, signo de perversidade e de corrupção, mais tornamo-nos incapazes de permanecer no interior de qualquer realidade. Quem o possui age como profanador, como traidor, como agente de dissolução; sempre ao lado ou fora das coisas, quando não obstante lhe ocorre de insinuar-se sobre elas, o faz à maneira de um verme no fruto. Se o homem tivesse a mínima vocação para a eternidade, ao invés de correr em direção ao desconhecido, ao novo, aos estragos provocados pelo apetite de análise, teria se contentado com Deus, com a familiaridade da qual prosperava. Aspirou a emancipar-se, a separar-se dele, e o conseguiu para além de suas esperanças. Após haver quebrado a unidade do paraíso, empenhou-se em arruinar também aquela da terra, introduzindo nela um princípio de fragmentação que acabaria com a ordem e o anonimato. Certamente antes também morria, mas a morte, cumprimento na indistinção primitiva, não tinha para ele o sentido que viria a adquirir depois, e tampouco estava carregada dos atributos do irreparável. Desde que, separado do Criador e do criado, tornou-se indivíduo, isto é, fratura e fissura do ser, e que, assumindo seu nome até a provocação, soube que era mortal, seu orgulho aumentou assim como sua confusão. Morria enfim à sua maneira, orgulhava-se disso, mas morria completamente, e isto o humilhava. Não querendo um desenlace que desejou arduamente, terminou por voltar-se, de má vontade, aos animais, seus companheiros de outrora: os mais vis como os mais nobres, todos aceitam seu destino, comprazem-se com ele ou resignam-se; nenhum deles seguiu seu exemplo, nem imitou sua rebeldia. As plantas, mais do que as bestas, regozijam-se de serem criadas: a urtiga mesma respira ainda em Deus e se pavoneia; apenas o homem se asfixia, e não é justamente esta sensação de sufocamento que o incita a singularizar-se na criação, a desempenhar o papel de proscrito conformado, de réprobo voluntário? O resto dos seres vivos, pelo fato mesmo de se confundirem com sua condição, têm certa superioridade sobre ele. E é quando ele os inveja, quando sente falta de sua glória impessoal, que compreende a gravidade do seu caso. Em vão tentará recuperar a vida, da qual fugiu pela curiosidade em relação à morte: jamais em sintonia, sempre estará mais aquém ou mais além dela.

CIORAN, E. M. “L’arbre de vie”, in La chute dans le temps, Oeuvres. Paris: Quarto/Gallimard, 1995.

Tradução do francês: Rodrigo Inácio R. S. Menezes