“Demiurgia verbal” (E.M. Cioran)

Emil CIORAN. “Demiurgia verbal” (Démiurgie verbale), La tentation d’éxister, in « Ouvres ». Paris: Gallimard, 1956. Tradução: Rodrigo Inácio Ribeiro Sá Menezes.

Texto publicado na revista de tradução N.T. (Nota do Tradutor), no. 9, novembro de 2014. Agradecimentos especiais a Gleiton (N. T.)

Link para a fonte do texto (PDF): NT9

O TEXTO: Publicado na França em 1956, La tentation d’éxister é o terceiro livro de E. M. Cioran (1911-1995) escrito em francês, idioma que adotaria definitivamente uma vez auto-exilado em Paris. Este volume se distingue dos dois anteriores (Breviário de decomposição, de 1949, e Silogismos da amargura, de 1952, ambos publicados no Brasil), assim como da maioria dos livros de Cioran, pelo seu caráter mais ensaístico e mais dissertativo, em contraste com o laconismo aforismático pelo qual o autor é conhecido.

Texto traduzido: CIORAN, E. M. “Démiurgie verbale”, in La tentation d’éxister. Paris: Gallimard, 1956.

O AUTOR: Filósofo de formação e pensador marginal por opção, ensaísta e aforista, Cioran é um representante do hodierno fenômeno do bilinguismo, tendo escrito diversos livros em seu idioma materno, dentre os quais dois publicados no Brasil: Nos cumes do desespero (1934) e O livro das ilusões (1936). Sua obra é marcada pela combinação de um pensamento perturbador com uma prosa poética sedutora.

O TRADUTOR: Rodrigo Menezes é graduado em Filosofia pela PUC-SP, mestre em Ciências da Religião e doutorando em Filosofia pela mesma instituição. No mestrado, abordou a influência gnóstica no pensamento de Cioran; no doutorado, estuda a relação entre niilismo, escritura e existência em Cioran.

DEMIURGIA VERBAL

Se me perguntassem qual é o ser que mais invejo, responderia sem hesitar: aquele que, repousando em meio às palavras, vive ingenuamente nelas por um consentimento espontâneo[1], sem questioná-las nem assimilá-las a signos, como se correspondessem à própria realidade ou fossem o absoluto esparramado no cotidiano. Não teria, em contrapartida, nenhum motivo para invejar quem as perfura com clarividência, quem discerne seu fundo e seu nada. Este já não mantém trocas espontâneas com o real; isolado de seus utensílios, acuado a uma perigosa autonomia, alcança um si-mesmo que o apavora. As palavras lhe escapam: não podendo apanhá-las, persegue-as com um ódio nostálgico, e nunca as profere sem debochar ou suspirar. Se não comunga mais com as palavras, não pode, contudo, passar sem elas, e é precisamente no momento em que estão mais longe que se agarra a elas.

O mal-estar que a linguagem suscita em nós não difere muito daquele que nos inspira o real; o vazio que entrevemos no fundo das palavras evoca o vazio que apreendemos no fundo das coisas: duas percepções, duas experiências em que se opera a disjunção entre objetos e símbolos, entre a realidade e os signos. No ato poético, essa disjunção assume o aspecto de uma ruptura. Apartando-se instintivamente das significações convencionais, do universo herdado e das palavras transmitidas, o poeta, em busca de uma ordem outra, lança um desafio ao nada da evidência, à ótica enquanto tal. Dedica-se à demiurgia verbal.

Imaginemos um mundo em que a Verdade, descoberta enfim, se imporia a todos, onde, triunfante, esmagaria o charme da aproximação e do possível. A poesia seria aí inconcebível. Mas como, para sua felicidade, nossas verdades mal se distinguem das ficções, a poesia não tem nenhuma obrigação em relação a esse mundo; formará para si então um universo próprio, tão verdadeiro e tão falso quanto o nosso. Mas não tão extenso, nem tão potente. O número está do nosso lado: somos legião e nossas convenções possuem essa força que apenas a estatística garante. A essas vantagens acrescenta-se outra, e não das menores: aquela de possuir o monopólio das palavras desgastadas. A superioridade numérica de nossas mentiras fará com que prevaleçamos sempre sobre os poetas, e que nunca se encerre o debate entre a ortodoxia do discurso e a heresia do verso.

Por menos que se sofra a tentação do ceticismo, a exasperação experimentada a respeito da linguagem utilitária se atenua e se converte, em longo prazo, em aceitação: a ela nos resignamos e a admitimos. Por não haver mais substância nas coisas que nas palavras, acomoda-se em sua improbabilidade e, por maturidade ou por lassidão, renuncia-se a intervir na vida do Verbo: para quê conferir-lhe um suplemento de sentido, violentá-lo ou renová-lo, quando se descobriu seu nada? O ceticismo: sorriso que paira em cima das palavras… Após tê-las sopesado uma após a outra e terminada a operação, não se pensa mais nisso. E quanto ao “estilo”, se se sacrifica ainda a ele, a ociosidade ou a impostura são as únicas responsáveis.

O poeta, por sua vez, julga diferentemente: leva a sério a linguagem, cria para si uma ao seu modo. Todas suas singularidades procedem de sua intolerância às palavras enquanto tais. Incapaz de suportar sua banalidade e seu desgaste, ele está predestinado a sofrer por causa delas e por elas; e, contudo, é por elas que tenta se salvar, é de sua regeneração que espera sua salvação. Por mais cheia de caretas que seja sua visão das coisas, não é nunca um verdadeiro negador. Querer revigorar as palavras, infundir-lhes uma vida nova, supõe um fanatismo, uma obnubilação sem igual: inventar — poeticamente — é ser um cúmplice e um fervoroso do Verbo, um falso niilista: toda demiurgia verbal se desenvolve à custa da lucidez…

Não é o caso de pedir à poesia uma resposta a nossas interrogações ou alguma revelação essencial. Seu “mistério” vale o mesmo que qualquer outro. Por que então apelamos a ela? Por que — em certos momentos — somos forçados a recorrer a ela?

Quando, sozinhos em meio às palavras, somos incapazes de lhes comunicar a menor vibração, quando nos parecem tão secas e tão degradadas quanto nós mesmos, quando o silêncio do espírito é mais pesado que o dos objetos, baixamos até o ponto em que o pavor de nossa inumanidade se apodera de nós. Desancorados, longe de nossas evidências, conhecemos de repente esse horror à linguagem que nos precipita no mutismo — momento de vertigem em que só a poesia vem nos consolar da perda momentânea de nossas certezas e de nossas dúvidas. É então o absoluto de nossas horas negativas, mas não de todas, apenas daquelas que derivam de nosso mal-estar no universo verbal. Já que o poeta é um monstro que tenta sua salvação pela palavra, que supre o vazio do universo pelo símbolo mesmo do vazio (afinal, seria a palavra outra coisa que isso?), por que não o seguiríamos em sua excepcional ilusão? Ele se torna nosso recurso todas as vezes que desertamos as ficções da linguagem corrente para arranjar-nos outras, insólitas mesmo que não rigorosas. Não parece então que qualquer irrealidade outra é preferível à nossa, e que há mais substância em um verso do que em todas essas palavras trivializadas por nossas conversas ou nossas preces? Que a poesia deva ser acessível ou hermética, eficaz ou gratuita, eis um problema secundário. Exercício ou revelação, pouco importa. Nós lhe pedimos que nos liberte da opressão, dos tormentos do discurso. Se o consegue, ela realiza, por um instante, nossa salvação.

Por motivos opostos, a linguagem só é aproveitável ao vulgo e ao poeta; se se tira proveito adormecendo em cima das palavras ou lutando com elas, em compensação, se corre certo risco ao sondá-las para descobrir sua mentira. Aquele que a isso se dedica, que sobre elas se debruça para analisá-las, termina por extenuá-las, por metamorfoseá-las em sombras. Será por isso castigado uma vez que compartilhará a mesma sorte. Tomai qualquer vocábulo, repeti-lo inúmeras vezes, examinai-lo: desaparecerá e, por consequência, alguma coisa desaparecerá em vós. Tomai outros e continuai a operação. De grau em grau chegareis ao ponto fulgurante de vossa esterilidade, às antípodas da demiurgia verbal.

Não se retira a confiança nas palavras, nem se atenta contra sua segurança sem colocar um pé no abismo. Seu nada procede do nosso. Não mais estando conosco, é como se nunca nos tivessem servido. Existem? Concebemos sua existência sem senti-la. Que solidão em que nos deixam e em que as deixamos! Somos livres, é verdade, mas sentimos falta de seu despotismo. Estavam aí com as coisas; agora que desapareceram, as coisas seguem seu caminho e se diminuem diante de nossos olhos. Tudo diminui, tudo some. Aonde fugir, por onde escapar ao ínfimo? A matéria se encolhe, abdica de suas dimensões, evacua os espaços… No entanto, nosso medo se dilata e, tomando o lugar, assume o papel de universo.

[1] Do francês, par consentement reflèxe, ou seja, um consentimento que é instintivo, involuntário, espontâneo, como o reflexo do joelho. Uma vez que o adjetivo “reflexo” não é muito usual em português (tal como é empregado por Cioran), e que a fórmula “consentimento reflexo” soa demasiado estranho (tende-se, inevitavelmente, a perceber dois substantivos seguidos), optamos por “espontâneo”, que exprime a mesma ideia. (n.t.)