“Cioran e a antropologia apocalíptica”, de Amelia Natalia Bulboacă

Publicado originalmente em Cioran, archives paradoxales, tomo II. Paris: Éditions Garnier, 2015, p. 181-193.

Em seu primeiro livro, Nos cumes do desespero, publicado em 1934, Cioran declarava:

Por mais que eu tenha me debatido neste mundo e por mais que eu tenha me separado dele, a distância entre mim e ele só o tornou mais acessível. Embora eu não possa encontrar um sentido no mundo, um sentido objetivo e uma finalidade transcendente, que indique para onde o mundo evolui e aonde chegará o processo universal, a variedade de formas da existência foi, contudo, para mim, uma ocasião de eternos encantamentos e tristezas.[1]

Nesta passagem fundamental, o filósofo de Răşinari reconhece uma vocação antropológica equívoca: em primeiro lugar, sublinhando a distância entre si e o mundo (uma distância que tem sua fonte na experiência da descascadura existencial), Cioran adota, talvez de maneira inconsciente, uma perspectiva manifestamente etnográfica.

O próprio Cioran fala, num dos capítulos de seu Breviário de decomposição, das “tribulações de um meteco”, radicalmente apartado do mundo, fazendo alusão à sua própria condição existencial de desenraizamento total tanto em relação a seus “ancestrais” quanto em relação aos outros “horizontes, conhecidos até o esgotamento”, e apresentados, eles também, “no sudário do ennui”[2]: “Surgido de alguma tribo desafortunada, vaga pelos bulevares do Ocidente.”[3]

Nesta proposição, o estrangeirismo característico da antropologia em face das outras ciências humanas constitui-se justamente por sua incerteza que deriva do contato permanente com a alteridade. Mas, longe de ser um defeito, uma deficiência, como a chamava Ugo Fabietti, sua força se funda de modo paradoxal justamente sobre o fato de ser uma ciência menos segura de si.

Mas Cioran nos adverte em seu Breviário de decomposição:

Não há atenção cujo exercício não leve a um ato de aniquilação: tal é a fatalidade da observação, com todos os inconvenientes que decorrem para o observador, desde o moralista clássico até Proust. Tudo se dissolve sob o olhar escrutador.[4]

Nós desenvolveremos esse ponto de vista ao longo de todo este estudo, colocando-o em relação à antropologia negativa de Lévi-Strauss e sua visão filosófico-antropológica tão próxima do pensamento cioraniano. É interessante destacar a maneira como o vocabulário de Lévi-Strauss é amiúde idêntico ao de Cioran; o antropólogo francês afirmará que o próprio objetivo das ciências humanas é “dissolver o homem”. Dissolver o homem equivale a penetrar o significado último das coisas, a ir além da comodidade das aparências tranquilizadoras e dos preconceitos reconfortantes. É Cioran quem o afirma: “Um livro deve cutucar as feridas, provocá-las inclusive. Um livro deve ser um perigo.”[5]

Cioran praticará ao longo de toda sua vida um exercício intenso de desfascinação de todos os problemas ontológicos. Ao mesmo tempo, “o exilado metafísico”, que praticava constantemente a ruptura e o desenraizamento radical em relação a todos os mundos possíveis, é capaz de se impedir de cultivar uma paixão devastadora do fenômeno “homem” e da vida mesma. Numa entrevista com Constantin Noica, relatada por este em seu Jurnal de idei [Jornal de ideias], Cioran faz uma confissão inequívoca: “Não conte para ninguém, mas eu amo a vida!”[6] Assim, diante do espetáculo do mundo, Cioran é tanto “um crítico implacável quanto um amante desesperado.”[7]

A partir destas poucas observações nós já podemos ver o modo pelo qual o estilo inconfundível de Cioran apresenta pontos de uma intensa afinidade com os mais importantes representantes da antropologia moderna: o ceticismo, a dúvida, o desprendimento, a alienação até a dissolução numa outra coisa (a qual transcende tanto sua própria cultura quanto as culturas e as dimensões do outro, situando-se nalguma ponto na fronteira entre as duas realidades, ou à margem do círculo hermenêutico de que fala Clifford Geertz), mas também a fascinação impetuosa pelo Homem, inexoravelmente mesclada ao sentimento de horror que a Humanidade lhe inspira, ao lado do inconveniente e da “extravagância” de ter nascido.

Cioran apresenta-se a nós como um Diógenes pós-moderno. A condenação que ele lança à humanidade parece inapelável, mas a intransigência da negação não chega anular definitivamente a força da fascinação pela vida. Eis porque vemos em Cioran um antropológico apocalíptico, um antropólogo da lucidez extrema enquanto “equivalente negativo do êxtase”.[8] Cioran encarna um dos atributos fundamentais do etnólogo: para o pensador romeno, o ceticismo representa “a elegância da ansiedade”,[9] mas também um “exercício de desfascinação”.[10] Porém, o ceticismo não é apenas um método de estudo, pois:

Se tornamos a dúvida num fim, ela pode ser tão consoladora quanto a fé. Ela também é capaz de fervor, ela também, à sua maneira, triunfa sobre todas as perplexidades, ela também tem uma resposta para tudo. De onde vem, então, sua má reputação? É que ela é mais rara que a fé, mais inabordável, e mais misteriosa. Não se pode imaginar o que se passa na casa do duvidador…[11]

Nos Cahiers, Cioran se define como um “cético desenfreado”.[12] A sede de negar e de dilacerar irreparavelmente a onda de aparências não deriva de uma vontade gratuita de autodestruição, de um vício perverso da contradição, mas do fato de opor uma “resistência”: “Dizer a todas as coisas um não fulgurante, contribuir da melhor maneira possível ao aumento da perplexidade geral”,[13] e isto porque nós nos encontramos diante de uma demonstração subentendida, implícita, da impossibilidade de uma verdade objetiva, estabelecida de uma vez por todas.

O distanciamento em relação a sua própria tradição intelectual, como exercício etnográfico imprescritível, adquire em Cioran uma radicalidade metafísica: “Quem és? – Sou um estrangeiro para a polícia, para Deus, para mim mesmo.”[14]

Em Cioran, as ideias e os sentimentos jorram de uma autêntica filosofia pática, em razão de uma inevitável meditação sobre o homem:

Eis porque não se interroga sobre ele sem tormento, sem paixão. Sem dúvida é também mais decente apiedar-se dele que de si (o que Pascal bem compreendeu). Em longo prazo, esta paixão se torna tão extenuante que só se pensa nos meios de escapar a ela. Nem a fatalidade de ser si mesmo, tampouco a de ser vivo, poderia se comparar àquela de ser homem.[15]

Cioran porta-se como um autêntico etnólogo que cataloga com uma minúcia científica os aspectos mais escondidos da condição humana. Nenhum continente de angústia permanecerá inexplorado, nenhum mundo de sofrimento será ignorado. Por que, então, o Privatdenker se esforça tanto para dissipar nossas ilusões e nossas fascinações infantis? A resposta, ele mesmo nos dá:

“Não fica bem”, me dizia você, “praguejar o tempo todo contra a ordem das coisas.” “É culpa minha se sou apenas um novo rico da neurose, um Jó em busca de uma lepra, um Buda de pacotilha, um Cita indolente e extraviado?”[16]

Os esforços de Cioran, suas neuroses, tudo que nasce da intimidade de seus órgãos, do sofrimento que o dilacera , são não apenas uma experiência pática pessoal como também recebem, inevitavelmente, uma intensa vivência metonímica da existência humana universal.

Falando de si, Cioran fala do homem (em geral), analisando-se a si mesmo, ele vai além de si e inclusive hoje continua a nos falar com palavras humanas, vivas e bastante atuais, palavras que nos inspiram e nos fascinam em virtude de brotarem de um sofrimento inefável.[17]

A característica fundamental das fontes antropológico-filosóficas de Cioran é o vécu passionnel (“a vivência passional”); como Buda, Pirro, Jó, Pascal e Leopardi, Cioran concebe a filosofia não como uma doutrina, mas como uma Philosophische Praxis, uma resposta concreta, pática, ao esforço de permanecer vivo, como ato de “resistência à existência”.[18] É o próprio Cioran quem o confessa: “Eu não tenho nenhuma aptidão para a filosofia: eu só me interesso pelas atitudes, e pelo lado patético das ideias…”[19]

Cioran é um “hermeneuta das lágrimas”, pois “ele vê nelas o signo tangível, a cifra, o ícone da condição humana, uma condição que se caracteriza por uma infelicidade estrutural e por um destino hostil, em que Deus se encontra ou ausente ou, o que é pior, presente como mauvais démiurge.”[20]

Em 1933, o jovem Cioran, diplomado desde 1931 na Faculdade de Letras e Filosofia de Bucareste, inscreve-se no grupo intelectual Tesis de Sibiu, no qual fará (no mês de março) uma conferência sobre antropologia filosófica. Nesse estudo inédito, Cioran adotava uma série de termos específicos do vocabulário antropológico (ele fala do relativismo cultural, dos esforços dos ensaios tipológicos e da história das concepções antropológicas), além de expor sua visão característica de uma antropologia negativa (como Lévi-Strauss também definira a sua própria) e da decadência, ideias tão semelhantes às contidas nas últimas páginas da obra do famoso antropólogo francês, Tristes trópicos.

A visão trágica sobre o destino do Homem, que Cioran desenvolverá ao longo de toda sua obra – neste único livro que escreverá por toda sua vida, como ele mesmo confessa a Gabriel Liiceanu, em 1990 –, já se encontra presente nesse estudo de juventude dedicado à antropologia filosófica.  Nós encontramos aqui completa e exaustiva a forma desse pensamento, e o que seu autor faz não é senão nuançá-la nos livros ulteriores. A forte convicção de Cioran é de que o destino trágico do homem resulta da separação fatal entre o espírito e a vida biológica, pulsional, irracional, ideia que ele compartilha com Max Scheler e Ludwig Klages.

O distanciamento do espírito em relação à vida é o resulto de um processo e não de uma diferenciação originária. Desprendendo-se paulatinamente da vida, ele veio a situar-se se numa região transcendente em relação à vida, cuja espontaneidade ele paralisa, e cujo elã irracional ele destrói. É um aspecto da tragédia do homem esta sua incapacidade de viver a vida em toda sua plenitude.[21]

No Breviário de decomposição, encontrará a solução para esta maldição: “Que nenhum ‘sentimento’ torne a preocupar-nos, e que a ‘alma’ se transforme na velharia mais ridícula…”[22]

Este dilaceramento, esta cisão do Espírito (ou da consciência) em face do dado orgânico, biológico, vivente, levará o homem inexoravelmente não em direção a um progresso fantasmático de um devir histórico aureolado, mas em direção a uma decadência perpétua e impetuosa, essa queda originária do paraíso que o homem não poderia jamais eludir. No Breviário, Cioran afirma:

Quando Adão foi expulso do Paraíso, em vez de insultar seu perseguidor, apressou-se em batizar as coisas: era a única maneira de acomodar-se com elas e de esquecê-las; foram assentadas as bases do idealismo. E o que foi apenas um gesto, uma reação de defesa no primeiro balbuciador, tornou-se teoria em Platão, Kant e Hegel.[23]

Eis aqui a ideia da fonte de toda a história e civilização humanas: o dilaceramento primordial e o sofrimento inefável do Princípio.

Veremos como Lévi-Strauss sustenta a mesma posição apocalíptica e pessimista, afirmando que toda a civilização humana não passa, no fundo, de uma “florescência passageira”[24] que não tem nenhum sentido senão “permitir à humanidade o desempenho do seu papel.”[25] Dito de outro modo, uma folha de palmeira que não pode esconder a vergonha e o absurdo do fato de existir. A contradição assinalada por Cioran, de maneira paroxística, é de fato esta: “obsessão de Adão que o Paraíso expulsou, e daquele que a Terra expulsará: os dois extremos da impossibilidade do homem.”[26]

O homem é surpreendido por Cioran como um instantâneo apocalíptico da queda livre no Irreparável. Julgamos útil citar integralmente a seguinte passagem fundamental, este manifesto de um insólito Cioran antropólogo:

Penso que, numa antropologia filosófica, o problema da decadência do homem não poderia ficar de fora. A decadência deveria ser concebida como uma negação do homem, como um desvio essencial de sua natureza específica. No fenômeno das grandes culturas, a decadência se caracteriza pelo esgotamento do fundo da vida e pela tendência de uma orientação totalmente oposta àquela da cultura organizada.

O retorno à irracionalidade da vida, o fato de transcender o processo de desintegração, levam o homem de volta ao estado original anterior à cultura. Sem desenvolver aqui uma escatologia, esse fim do homem que equivale a uma reintegração na vida, a uma renúncia ao que faz a especificidade, constitui o fenômeno da decadência do homem. Não somos nem um pouco autorizados a crer que o homem, enquanto ser produtor de valores culturais, manter-se-á ainda por muito tempo, estando dado que a inconsistência, as contradições e as antinomias imanentes a sua estrutura reduzem suas possibilidades e sua capacidade produtiva. A decadência é um fenômeno fatal que devemos admitir e compreender. A recusa de um fenômeno tal deriva do fato de que o homem, sob o impulso de uma tendência de “etização” do real, atribui a este valores da ordem do bem cujo desenvolvimento ao longo do tempo é indefinido. O fato de que ele está submetido à decadência explica porque uma antropologia está tão mais próxima da realidade quanto o trágico predomina enquanto elemento essencial em sua estruturação. O destino do homem vem a ser impressionante uma vez enquadrado em tais fenômenos, visto que sua particularidade deriva de uma singularização dolorosa do homem no universo.[27]

Acreditamos que se pode encontrar aí a chave de acesso à toda a meditação antropológica de Cioran, a “cifra” da revelação de sua verdade. Há quatro pontos fundamentais que nós gostaríamos de sublinhar antes de, em seguida, aprofundá-los um a um.

Primeiramente, sublinhamos o termo “escatologia” empregado por Cioran, em relação ao conceito de “decadência”, mais exatamente o mesmo termo utilizado por Lévi-Strauss na elaboração de sua antropologia negativa (como tê-lo-ia chamado Günther Anders). Neste sentido, uma passagem de Tristes trópicos é reveladora uma vez que ele afirma que:

O mundo começou sem o homem e terminará sem ele. As instituições, os costumes e os hábitos, que terei passado minha vida a inventariar e a compreender, são uma florescência passageira de uma criação com referência à qual não possuem nenhum sentido, senão, talvez, o de permitir à humanidade o desempenho do seu papel Longe de marcar-lhe um lugar independente, e de ser o esforço do homem – mesmo condenado – opor-se em vão a uma decadência universal, esse papel aparece, também, como uma máquina, talvez mais aperfeiçoada do que as outras, trabalhando para a desagregação de uma ordem original e precipitando uma matéria poderosamente organizada numa inércia cada vez maior e que um dia será definitiva.[28]

Lévi-Strauss vai desenvolver, nas últimas e intensas páginas de seu tratado, uma autêntica escatologia, de aparência cioraniana, da decadência e do crepúsculo inevitável do homem e do devir. Esta “escatologia”, sobre a Cioran não argumentará, como se diz, no âmago de sua antropologia filosófica, será explicitada até suas últimas consequências em todos seus outros livros de maturidade. Lévi-Strauss, por sua vez, definirá a escatologia como uma “entropologia”.

Um segundo ponto essencial que se pode extrair deste fragmento revelador é a alusão feita por Cioran ao “retorno à irracionalidade da vida” que fará o homem retornar ao “estado anterior à cultura”. É ainda em Tristes trópicos que encontraremos, nessas páginas de uma intensa e maravilhosa descrição etnográfica de algumas tribos primitivas da América do Sul, a imagem viva, concreta, real, disso que Cioran concebia como o “estado originário anterior à cultura”. Trata-se aí, certamente, de uma idealização mais ou menos consciente da parte de Cioran, uma vez que uma organização humana, por mais primitiva que nos pareça, é, não obstante, a expressão de uma cultura, e talvez seja que nunca possamos realmente conhecer o aspecto do homem primordial, anterior à aparição da cultura.

Na escatologia que ele vai elaborar no Breviário de decomposição, Cioran profetiza que o crepúsculo definitivo do Devir do mundo e das civilizações não conduzirá à extinção do homem da face da terra, pois ele continuará resistindo, transformado numa espécie de sub-homem. Cioran sonha com o retorno à humanidade primordial, vital, à época em que o homem encontrava-se no começo da civilização, mas a tensão da fascinação e da desfascinação (ou, em termos baudelairianos, “o horror da vida e o êxtase da vida”) é resolvida, para Cioran, em termos negativos.

O homem “se aniquilará enquanto criador: devemos concluir que todos os homens desaparecerão da Terra? Não é preciso ver as coisas cor-de-rosa. Uma boa parte, os sobreviventes, continuará se arrastando, raça de subhomens, exploradores do apocalipse…”[29]

Por fim, Cioran identifica na dor e no sofrimento a peculiaridade da existência humana, e essa singularização dolorosa do homem no universo” faz com que seu destino pareça pura e simplesmente “impressionante”, completamente desprovido, tal como se mostra, de todo sentido. Por esta descoberta, o pensador desenvolverá em seguida, ao longo dos anos, uma verdadeira metafísica não apenas do “inconveniente de ter nascido”, mas também da “extravagância de ter nascido”.

Cioran e a fascinação do homem primitivo. O homem primitivo como filósofo cioraniano

Minha única desculpa: não escrevi nada que não tenha surgido de um grande sofrimento. Todos meus livros são resumos de provações e de desconsolações, quintessência de tormento e de fel, todos eles não passam de um mesmo e único grito.[30]

Cioran transpôs a imitação em conceito, isto é, ele traduziu em palavras a voz do ser, que é “o grito da queda no cosmos”.[31] “Cada ser emerge sabe-se lá de onde, solta seu pequeno grito e desaparece sem deixar rastros.”[32]

Para Cioran, “tudo neste mundo se reduz a ter um destino, e ter um destino significa viver no tempo com o sentimento do irreparável.”[33]

Di Gennaro observa, a propósito da hermenêutica das lágrimas do pensador de Răşinari:

É com sarcasmo que Cioran afirmava que: “No Juízo Final só se pesarão as lágrimas.”[34] Que pena que para além deste mundo só nos espere o ventre do nada. É disto que estava perfeitamente consciente o pensador de Sibiu, que viveu toda sua vida na esperança de que não mais houvesse razão nem de se queixar, nem de rezar, nem de escrever, e que nos legou, por sua imensa obra – composta de preces e de lágrimas – uma importante confissão sobre o modo como devemos encarar o doloroso caminho da vida.[35]

De fato, Cioran nos fala, por suas lágrimas, do caso humano em sentido antropológico, universal. Essas considerações que encontram sua fonte num descascamento existencial de uma intensidade transbordante, também estão presentes na filosofia e nas crenças do homem primitivo, compreendendo-se por este termo não uma noção negativa, de conotação evolucionista e etnocentrista, mas o estágio das culturas humanas caracterizadas por uma tradição oral e por uma religião dita “pagã” ou “politeísta”, “animista”, “fetichista” – numa palavra: “ancestral”.

O tema do sofrimento, o sentimento do trágico, do desespero, a relação conflitiva e indiferente com o divino, todos estes são aspectos que se pode encontrar também nas culturas tradicionais. Não é, portanto, surpreendente observar que Cioran nutrira desde sempre uma grande admiração por essa unidade primordial, pelo pagão simples, analfabeto, porém, de uma profundidade filosófica superior à do filósofo acadêmico. Esta profundidade deriva justamente da pulsação viva, inalterada, do espírito do homem primitivo que não está apartado da vida por uma cultura artificial dedicada a produzir ideias em escala industrial, como acontece com as sociedades “avançadas”, produção à qual Cioran permanece, não por acaso, marginal, recusando os prêmios literários que lhe foram conferidos ao longo do tempo, permanecendo fiel, até o fim, à intenção declarada de praticar a escrita como procedimento terapêutico de natureza estritamente privada, e de jamais escrever pensando num público leitor.

As raras ocasiões nas quais Cioran fala da felicidade são aquelas em que são rememorados os instantes inesquecíveis de uma infância paradisíaca passada em seu vilarejo natal de Răşinari, quando, na mais perfeita liberdade, ele flanava como autêntico selvagem pelos arredores da vila e de Coasta Boacii, verdadeiro axis mundi de seu paraíso perdido. Eis os termos pelos quais o pensador romeno fala de suas lembranças da Idade do Ouro:

Uma infância maravilhosa. Acredito que me tornei infeliz na vida como uma punição por ter sido tão extraordinariamente feliz quando criança. Refiro-me à minha primeira infância, até a idade de sete ou oito anos, não mais, após o quê minha vida foi uma catástrofe. Eu nasci num vilarejo montanhoso, bastante primitivo, e estava sempre fora de casa, ao céu aberto. Eu vivia como se estivesse na natureza selvagem. Tenho lembranças maravilhosas daquele tempo.[36]

É no mesmo que vai uma outra declaração de Cioran, esta por sua vez nos Cahiers: “Andar ao longo dos rios e quebrar nozes como as crianças e os vadios – eis o que é a felicidade.”[37]

Cioran fala, com efeito, de uma infância primordial, infantil, que se desprende desse fundo atávico de autenticidade da vida indiferenciada e que se traduz nos povos primitivos, assim como se vê em Lévi-Strauss, na vivência totalizante e natural, impetuosa – ou, o que é pior, demonizada – dos instintos humanos. Outra figura-chave que sempre seduzirá Cioran é aquela do raté (“fracassado”, “zé-ninguém”), mestre do cansaço – Meister des Überdrusses –, do “desgosto em relação à pseudo-Criação e da perda do paraíso”, como o precisa Ion Vartic:

Os ratés cioranianos não têm discursos de doutorado sobre a metafísica e a filosofia, mas revivem profundamente, e da maneira mais autêntica possível, a situação do primeiro filósofo, do pensador por conta própria e por responsabilidade própria, aparentado ao camponês e ao artesão, do vagabundo, da prostituta e do mendigo, e, no limite, do “troglodita” original, “cegado” e “aterrorizado” pelo espetáculo irresoluto do mundo.[38]

Leitor apaixonado dos escritores russos, “o adolescente Cioran retém a ideia de Tolstói da salvação pela ingenuidade camponesa”.[39] Ele verá em seus amigos analfabetos “o candor vital e o charmoso pitoresco, e, ao mesmo tempo, a sede inextinguível com que eles consumiam sua existência. Francamente, os viventes sabem viver e este fato leva Cioran em sua direção.”[40]

Pelas numerosas referências à natureza, à infância, à ingenuidade, assim como ao tipo do “homem real” representado unicamente pelo troglodita pré-histórico e pelo camponês, Schiller teria considerado automaticamente o camponês como pertencente à linha dos “sentimentais”. Frases como as presentes nos Cahiers justificariam totalmente a etiqueta schilleriana […] A natureza do mundo vegetal, mineral e animal, assim como a natureza humana da criança, do mundo primitivo e do camponês, nos atrai irresistivelmente – observava Schiller – porque uns e outros são natureza, pura e simplesmente. E o sentimento do mundo moderno em relação à natureza se assemelha perfeitamente ao sentimento do doente em relação à saúde.[41]

Cioran confessa a Jason Weiss:

Se quisermos conhecer a felicidade na vida, devemos nada fazer, nada realizar, apenas viver, sem mais. Sinto que o homem não deveria ter se lançado nesta fascinante aventura que é a história. Tudo que ele faz se volta contra ele, pois não foi feito para fazer nada, apenas para contemplar e viver como os animais e as árvores fazem. E irei ainda mais longe: o homem não deveria ter existido, deveria ter permanecido uma espécie como qualquer outra e não ter rompido com o resto da Criação.[42]

E, no Cahier de Talamanca, Cioran anota:

Eu creio, como o gnóstico Basilides, que a humanidade deve retornar aos limites naturais pelo retorno a uma ignorância universal, verdadeiro signo de redenção.[43]

Conforme mencionamos na introdução deste ensaio, parece-nos que Lévi-Strauss tende a esta posição quando faz o elogio do homem primitivo preconizado por seu ilustre precursor, Jean-Jacques Rousseau. Mas qual é, de fato, “a situação do primeiro filósofo” ao qual alude Ion Vartic no fragmento supracitado? Nós apelaremos a três grandes antropólogos (Lévi-Strauss, Paul Radin, Clifford Geertz) que nos forneceram abundantes descrições dessas fascinantes figuras, e poderemos ver como o núcleo do discurso antropológico cioraniano poderia ser representado por esse perpétuo exercício antinômico de fascinação e desfascinação. A vida e o homem – verdadeiro flagelo da Criação – horrorizam a Cioran, mas, ao mesmo tempo, ele sente uma atração inelutável pela vida em suas formas mais intensas, isto é, nessas formas em que o fatal dilaceramento entre Natureza e Espírito ainda não se produziu.

Nós tentamos, à nossa maneira, projetar uma luz outra sobre a obra de Emil Cioran, adotando um ponto de vista antropológico. Descobrimos no pensador romeno um verdadeiro antropólogo crepuscular, o antropólogo do apocalipse sem apocalipse… Ao mesmo tempo, na metafísica do homem primitivo, ou seja, do “objeto de estudo” específico da disciplina antropológica, pudemos esboçar a descrição de uma forma mentis surpreendentemente trágica, mas não ainda ateia ou niilista.

Esperamos que este exercício não terá sido vão, concluindo-o com um parágrafo da obra de juventude de Cioran, Antropologia filosofică:

Um fato permanece certo: no futuro próximo a antropologia constituirá a preocupação central e essencial da filosofia como outrora fora o caso da religião, da mecânica ou da história, com a diferença de que aquela utilizará estas últimas, o que inversamente não fora o caso.[44]

Tradução do francês:
Rodrigo Inácio Ribeiro Sá Menezes (14/02/2017)

NOTAS:

[1] CIORAN, Emil. “O princípio satânico no sofrimento”, Nos cumes do desespero. Trad. de Fernando Klabin. São Paulo: Hedra, 2011, p. 132.

[2] IDEM, Œuvres. Paris: Gallimard, [coll. « Bibliothèque de la Pléiade »], 2011, p. 98.

[3] IDEM, “Tribulações de um meteco”, Breviário de decomposição. Trad. de José Thomaz Brum. Rio de Janeiro: Rocco, 2011, p. 134.

[4] IDEM, “No segredo dos moralistas”, Ibid., p. 202.

[5] IDEM, Œuvres. Paris: Gallimard, [coll. « Bibliothèque de la Pléiade »], 2011, p. 942.

[6] Apud Rodica Fofiu, « Un désespoir calme/un désespoir ouvert. Correspondance Noïca-Cioran », in: Cahiers Emil Cioran. Approches critiques, vol. 10, p. 242, citação de Noica, Jurnal de idei, Journal d`idées, Bucureşti, Humanitas, 1991, p. 181. Em romeno: « Mă, să n-o spui nimănui, dar mie-mi place viaţa ! »

[7] DI GENNARO, Antonio; MOLCSAN, Gabriella (orgs.), Cioran in Italia. Atti del Convegno. Roma, 10 novembre 2011. Roma: Aracne, 2012, p. 109.

[8] CIORAN, E.M., Œuvres. Paris: Gallimard, [coll. « Bibliothèque de la Pléiade »], 2011, p. 942.

[9] IDEM, Silogismos da amargura. Trad. de José Thomaz Brum. Rio de Janeiro: Rocco, 2011, p. 23.

[10] IDEM, Le mauvais démiurge, in: Œuvres, Op. cit., p. 715.

[11] IDEM, Ibid., p. 716.

[12] IDEM, Cahiers : 1957-1972. Paris: Gallimard, 1997, p. 36.

[13] IDEM, Ibid., p. 26.

[14] IDEM, Le mauvais démiurge, in: Œuvres, Op. cit., p. 715.

[15] IDEM, Ibid., p. 655.

[16] IDEM, Silogismos da amargura, p. 69-70.

[17] DI GENNARO, Antonio; MOLCSAN, Gabriella Molcsan (orgs.), Op. cit., p. 155.

[18] IDEM, Ibid., p. 11.

[19] IDEM, Cahiers : 1957-1972, p. 55.

[20] DI GENNARO, Antonio; MOLCSAN, Gabriella (orgs.), Op. cit., p. 151.

[21] CIORAN, Emil. “Antropologia filosofică”, in: Opere, vol. II (Publicistică, manuscrise, corespondenţă). Bucareste: Academia Română/Fundaţia Naţională pentru Ştiinţă şi Artă, 2012, p. 939.

[22] IDEM, “Rostos da decadência”, Breviário de decomposição, p. 159.

[23] IDEM, Ibid., p. 157.

[24] LÉVI-STRAUSS, Claude, Tristes trópicos. Trad. de Wilson Martins. São Paulo: Anhembi, 1957, p. 442.

[25] IDEM, Ibid., p. 442.

[26] CIORAN, E.M., “Rostos da decadência”, Breviário de decomposição, p. 159.

[27] CIORAN, Emil. “Antropologia filosofică”, Op. cit., p. 940.

[28] LÉVI-STRAUSS, Claude, Tristes trópicos, p. 442.

[29] CIORAN, E.M., “Rostos da decadência”, Breviário de decomposição, p. 155.

[30] IDEM, Cahiers : 1957-1972, p. 588.

[31] BARBU, Constantin, Prefácio a Antropologia filosofică. Craiova: Editura Pentagon-Dionysos, 1991, p. 42-43.

[32] CIORAN, E.M., Cahiers : 1957-1972, p. 456.

[33] IDEM, “Antropologia filosofică”, Op. cit., p. 950.

[34] IDEM, Lacrimi şi sfinţi, in: Œuvres, p. 290.

[35] DI GENNARO, Antonio, Metafisica dell’addio. Roma: Aracne Editrice, 2014, p. 41-42.

[36] WEISS, Jason, An Interview with Cioran (realizada em Paris, agosto de 1983). Publicado pela primeira vez na revista Grand Street, vol. 5, no. 3, primavera de 1986, Nova Iorque, p. 112.

[37] CIORAN, E.M., Cahiers : 1957-1972, p. 616.

[38] VARTIC, Ion, Cioran naiv şi sentimental. Iaşi-Bucureşti: Polirom, 2011, p. 59.

[39] IDEM, Ibid., p. 63.

[40] IDEM, Ibid., p. 63.

[41] IDEM, Ibid., p. 274-275.

[42] WEISS, Jason, An Interview with Cioran, p. 140.

[43] CIORAN, E.M., Cahier de Talamanca-Ibiza. Paris: Mercure de France, 2000, p. 15.

[44] IDEM, “Antropologia filosofică”, Op. cit., p. 941.