“Cioran profetiza os fracassos das utopias” (Marcelo Coelho, 31/08/94)

Os pessimistas costumam ser bons profetas. Pessimista profissional, pessimista voluptuoso e maníaco, o escritor francês de origem romena E.M. Cioran é conhecido do público brasileiro pelos seus “Silogismos da Amargura” e pelo “Breviário de Decomposição”, ambos publicados pela editora Rocco.
Acaba de sair, na mesma editora, “História e Utopia”. Conhecíamos o pessimista, temos agora o profeta. O livro é de 1960 e reúne ensaios sobre o comunismo, a Rússia, o pensamento utópico, a tirania e a liberdade.
Quase 30 anos antes da derrubada do Muro de Berlim, Cioran fez profecias sensacionais. No primeiro ensaio, escrito como se fosse uma carta de Paris a um amigo no Leste Europeu, fala das decepções em torno do socialismo.
O milagre que salva a burguesia ocidental, diz Cioran, “é precisamente o fracasso do outro lado, o espetáculo de uma grande idéia desfigurada… quem poderia adivinhar, no século passado, que a nova sociedade, por causa de seus vícios e iniquidades, iria permitir à antiga manter-se e até consolidar-se, e que o possível, tornado realidade, voaria em auxílio do liquidado?”
Essas palavras ganham especial atualidade com o fim do sistema soviético. Os horrores do Gulag e a crise da economia planificada ironicamente deram à ideologia capitalista uma sobrevida e um vigor formidáveis. É como se o fracasso da URSS tivesse servido, apenas, para legitimar o Ocidente.
Só que Cioran vai mais longe e continua suas previsões. O declínio de uma utopia, diz ele, não é acontecimento que possa ficar impune. Algum outro fanatismo surge em seu lugar, como resposta às ameaças de estagnação. “Nesta ausência inusitada em que estamos encurralados, não suponha que nada se delineia: distingo –pressentimento ou alucinação?– uma espera de ‘outros deuses’.”
Criticando, como muitos, a “timidez” e a decadência do Ocidente, Cioran prefigura, sem dúvida, a confusa situação ideológica que se vive nos países desenvolvidos. “Outros deuses” –do fundamentalismo islâmico ao neonazismo– agitam-se para tomar o lugar desta utopia fracassada, o socialismo; utopia que, em maior ou menor grau, ser filha legítima da experiência política, intelectual e social européia nos últimos 200 anos.
Para usar um clichê, tudo o que escrevia Cioran em 1960 é de uma “surpreendente atualidade”. Mas o dom profético do autor é capaz de outra proeza: Face à “desvitalização” do Ocidente, ao conformismo geral, onde buscar, na Europa, sinais de vigor fanático? De selvageria instintiva?
Eis o que diz Cioran: “imaginemos o império russo, demasiado vasto, debilitando-se e desagregando-se, tendo como corolário a emancipação dos povos: quais dentre eles tomarão a dianteira e trarão à Europa esse incremento de impaciência e de força sem o qual uma irremediável paralisia a espreita?”
Cioran aposta nos Bálcãs. “Não quero defendê-los, mas também não quero ocultar seus méritos. Esse gosto pela devastação, pela desordem interior, por um universo semelhante a um bordel em chamas, essa perspectiva sardônica sobre cataclismas fracassados ou iminentes, essa aspereza, esse ócio de insones ou de assassinos, não só uma rica e pesada herança que beneficia seus possuidores? … Únicos “primitivos” na Europa, darão a ela talvez um novo impulso; impulso que a Europa considerará sua última humilhação”.
Dados os horrores da guerra civil na Iugoslávia, é ao mesmo tempo espetacular a previsão feita por Cioran, e chocante o tom com que ele a enuncia.
Mas Cioran é assim mesmo. Parece ter um prazer diabólico em elogiar guerras e massacres. Não que os ache bonitos. Mas seu desprezo pela paz e pela conformidade burguesa inclina-o à admiração pelas manifestações do Mal.
Suas frases adquirem, assim, um negrume opulento, um extremismo em câmara lenta, uma acumulação fulgurante de idéias detestáveis, uma grandiloquência surda. O pessimismo tem, sem dúvida, qualidades estéticas superiores ao otimismo. Vocação inata do homem para o Mal –este tema faz as delícias de Cioran. Permite-lhe o prazer da parcialidade, da revelação escandalosa, do radicalismo moral, sem sair jamais do desengano elegante, do desconsolo nobre da fraseologia.
Discípulo de Nietzsche, Cioran depurou-o das tendências alemãs para a fanfarronada e a vulgaridade. Defendendo o domínio implacável de uma aristocracia de “homens livres”, Nietzsche era, paradoxalmente, plebeu nas estridências de seu estilo. Cioran não quer anunciar nenhum “super-homem”, nem poetiza ao modo de Zaratustra.
Sua obra é um capítulo na complexa história do afrancesamento de Nietzsche. Houve as versões de esquerda do pensamento nietzschiano, com Foucault e Deleuze –máquinas radicais contra Hegel e Marx, mas ainda assim pretensamente revolucionárias, antiburguesas. Houve exemplos de fascínio irracionalista por Nietzsche na França. Coube, entretanto, a um romeno de nascimento, como Cioran, afrancesá-lo na tradição dos moralistas clássicos –La Rochefoucauld, Pascal–, de um jansenismo sem Deus, de um pessimismo total, e que por isso mesmo adquire as aparências de ser verdadeiro como nenhum outro.
O desencanto, o desengano de Cioran podem ser aceitos ou não pelo leitor. Ele fala da inveja como grande móvel das ações humanas, como feliz e sanguinário fator de dinamismo. Odeia a estagnação prefigurada pelas utopias de uma sociedade feliz. Vê na história uma sucessão de massacres e fanatismos, e não a realização dos desejos das gerações passadas.
Desconfio, contudo, que Cioran não tem um pensamento capaz de suscitar adesão e discordância. Seria ridículo, de mau gosto, contestar as suas idéias, tal o peso que a forma literária assume sobre o que ele escreve. É mais um esteta que um filósofo, mais estilista que pensador.
A volúpia que demonstra nas descrições do horror e na destruição das esperanças humanas é mais uma volúpia com a própria frase do que com as verdades ques está a dizer. Seu desencanto, sua amargura, parecem mais uma atitude literária do que a conclusão dolorosa que tenha tirado do convívio dos homens.
Às vezes, temos a impressão de que ele escreve com o objetivo de chocar Nietzsche e La Rochefoucauld. “Vocês pensavam que eram pessimistas? Eis aqui o meu livro, vejam como rompe os limites do impublicável!”
Se existe algo de exibicionista, e portanto de falso, na amargura de Cioran, o fato é que suas previsões e diagnósticos são espantosamente acertados. Trata-se apenas de dizer que o pessimismo sempre triunfa? Não, claro. Pode-se fazer prognósticos pessimistas sem acertar no ponto específico da crise iugoslava com 30 anos de antecedência.
A questão talvez seja estatística. Milhares de previsões foram feitas em 1960. Uma delas estava certa, e ganha destaque agora. Se estivesse errada, teria sido esquecida. Mas a pergunta continua: como é que Cioran pôde acertar? Seu aparato conceitual, suas idéias, suas concepções eram tão verdadeiras, tão próximas da realidade, que o permitiram prever o que se seguiria? Talvez sim.

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