“Carta ao amor local” (Henrique Azevedo)

LAMPEJO, nº 5 – 05/2014

Resumo: Carta endereçada a Cioran acerca do amor e das dores de se viver em Fortaleza. Tal projeto vem da ideia de mostrar que é possível pensar a cidade que vivemos, usando como inspiração um autor de visão de mundo profunda. Assim, esta Carta ao amor local se inspira em a Carta a um amigo longínquo de Cioran.
Palavras-chave: Cidade, Violência, Amor.

Abstract: Letter to Cioran about the love and pain that is to live in Fortaleza. This project comes from the idea to show the possibility to think about the city we live, using as inspire the deep standpoint of an author. Thus, this Carta ao amor local has been inspired in the Sobre dois tipos de sociedade: carta ao amigo longínquo of Cioran.
Key-Words: City, Violence, Love.

Fortaleza, data imemorial.

Caro Cioran,

“A pátria é apenas um acampamento no deserto” (pg. 12), dizes tu, citando um texto tibetano não identificado. Mas o que é o deserto de minha pátria senão uma louca vontade de se firmar e amar o torrão que nascemos? E se este local nada é, senão uma ilusão disfarçada de terra, cultura, povo e nacionalismo, o que fazer? Somo seres demasiado amantes de nós mesmos, não excluindo nosso redor, para louvar este ditado tibetano. Conhecer lugares outros, diferentes daquele que nascemos, traz à tona a vontade louca de se esgueirar pelo mundo, buscando aventuras, amores, dores, etc. Faz-nos viver a intensidade que um verbo como este se nos impõe e seu substantivo, vida, ganha ares concreto de felicidade e de solidão, de medo e esperança, de vontade e depressão. Somos todos seres arraigados, por vontade própria ou não, ao destino de nascermos onde não escolhemos. A vida nos mostra, caro amigo, que a liberdade não se nos apresenta de pronto, pois o ato de nascer é o mais tirano de todos, uma vez que não escolhemos nossos pais, tampouco nossa condição financeira, a cultura a que pertencemos, dentre uma série de outras coisas. Mas, tenho a plena certeza que nos seria muito menos penoso se escolhêssemos, pelo menos, o local no qual nascemos e, por conseguinte, a cultura a que pertencer.

Meu amigo, tu nasceste em Rasinari, berço baixa da cultura europeia neste país que assombra o mundo devido sua paisagem áspera e contos de famigerados vampiros. Viestes ao mundo, contudo, destinado a civilizar-te, por meio da cultura das intermináveis filas, do frio que corta a carne e elegantiza os corpos femininos; por mais distante de Paris ou de Roma, não houve modo de fugires de sua cultura europeia, pois és desde sempre europeu de nascimento. Já eu, pobre de mim, nasci em meio à fétida e ensolarada Fortaleza, lugar de feias prostitutas de rua e belos cartões-postais litorâneos. Cioran, meu caro amigo, nos brindaste com esta carta ao amigo longínquo, a fim de explicar a este fraterno que não havia nada de glamoroso em escrever em francês ou mesmo morar em Paris, compreendo-te plenamente. Ilusões de mentes dementes, que imaginam paisagens belas e uma vida descolada da vida mesma. Não quero te mostrar o que é, de fato, tua Romênia ou mesmo Rasinari, pois a conheces melhor que eu, que nunca lá estive senão por tuas palavras. Entretanto, quero que sinta o peso de ser um nada cultural imerso em um mar de cultura desimportante ao teu europeísmo. Quero te mostrar, meu amigo concreto e imaginário, como sucedeu minha vida nesta cidade a partir de um desenvolvimento de pensamento sobre meu torrão tão áspero quanto doce de se viver, quero que sintas a violência de habitar a selva que cheira a morte e a pedras de crack em suas esquinas pobres.

Comecemos pelo início. “Tão admirável me pareceu o projeto que não hesitava em divulgá-lo; os interessados apreciaram mediocremente o conteúdo da questão e me qualificaram de canibal: minha carreira de benfeitor público começava sob maus presságios.” (pg 14) Diz você a respeito das suas inventivas incendiárias, que em sua juventude o acompanharam. Pois bem, Fortaleza é uma cidade que não permite tais inventivas, principalmente se nasces na periferia ou mesmo nas mais pobres favelas ao redor de luxuosos condomínios. Minha cidade, meu caro, está cheia de malfeitores, inocentes responsáveis por si mesmos (sem a consciência de si tão apregoada pela filosofia) execrados pela mídia e pela população, em reflexo daquela, devido a suas lutas inconscientes com o intuito de serem ouvidos. Ah! Cioran, não sabes mesmo o que é está totalmente divorciado do estado de direito, de modo que as forças de repressão invadam sua casa sem a devida autorização judicial, batam em sua família, revirem seus pertences e ainda te chamam dos mais atrozes nomes, que por conveniência não repetirei aqui. Sei que o fascismo exerceu algo pior, mas o estado de direito estava suspenso. A violência impressa dentro das mentes dos moradores desta minha bela morena é de fazer inveja a qualquer húngaro, os quais tu tanto temeste em tua cidade natal. Relataria a ti casos e mais casos, entretanto me resigno a apenas um: meu bairro nunca fora pacato, mas, quando criança, presenciei uma difícil situação. Meus vizinhos eram ladrões e drogados. Então, por conta de uma discussão entre o pai e um dos filhos, este último resolve sacar uma arma e atira em seu pai, que se fere na perna; não satisfeito, o velho que também portara uma arma atira na altura abdominal do filho, de modo que ambos desmaiaram devido à perda de sangue e foram conduzidos ao hospital. Ao acordarem viram que estava um ao lado do outro e que nenhum dos dois havia morrido. Ambos juraram matar ao outro e não podiam mais conviver na mesma casa. Hoje estão mortos devido a outros incidentes… [PDF]

Carta a um amigo longínquo, Carta ao amor local, Fortaleza, Henrique Azevedo, Revista Lampejo