“A interpretação analógica das relações entre niilismo gnóstico e niilismo existencialista segundo Hans Jonas” (Jelson R. de Oliveira)

SÍNTESE – Revista de Filosofia, vol. 41, no. 129 (2014), pps. 101-127.

Para a revista, costumamos conversar com filósofos contemporâneos para interview essay e publicá-los lá, ou você pode encomendá-los com antecedência para não ter que esperar que sejam publicados.

Resumo: Pretende-se examinar as principais teses da análise hermenêutica realizada por Hans Jonas sobre o movimento gnóstico antigo, bem como estudar as principais formulações analógicas que lhe permitem afirmar que o dualismo está na base da formulação das ideais gnósticas, e que ele serviria de fio condutor para a apreciação das ideias existencialistas, de forma a fazer transparecer a similitude de ambas as correntes filosóficas. Para isso, serão analisados os pressupostos teóricos, filosóficos e históricos levantados por Jonas a respeito do gnosticismo e, posteriormente, alinhadas as principais convergências dos dois “sistemas” de descrição da situação do homem no mundo.
Palavras-chave: Hans Jonas, gnosticismo, niilismo, existencialismo.

Abstract: The aim of this article is to analyze the main thesis of the hermeneutic analysis performed by Hans Jonas about the ancient Gnostic movement. It also examines the major analog formulations that allow him to say that dualism underlies the formulation of Gnostic ideas, and that it could serve as a guide for the assessment of existentialist ideas, in order to highlight the similarity of both philosophies. For this, we will analyze the theoretical, philosophical and historical assumptions raised by Jonas about Gnosticism and finally, we will discuss the main convergences of the two “systems” to describe the situation of man in the world.
Keywords: Hans Jonas, Gnosticism, nihilism, existentialism.

1. Introdução

A pesquisa de Hans Jonas sobre o gnosticismo tem sido reconhecida ainda hoje como uma referência para aqueles que pretendem realizar um estudo válido sobre a história desse movimento (cf. PINSART, 2002, p. 23). Em sua pesquisa, Jonas parte de duas constatações: uma primeira, de cunho mais descritivo e histórico, é que há muitas e divergentes correntes explicativas sobre esse fenômeno que está na base cultural do Ocidente; uma segunda, que a diversidade das análises e das interpretações, malgrado a “ausência de uma característica unificadora” (RG, p. 23), engloba um princípio comum, o qual, sendo compreendido, forneceria uma possibilidade de interpretação da civilização na qual ele mesmo surgiu “e cujo traço principal foi o sincretismo” (RG, p. 23).

Assim, se os textos dos chamados Padres da Igreja são a principal fonte de informações sobre o gnosticismo primitivo, é verdade também que essa inquirição cessou ”passado o perigo e morto o interesse da polêmica” (RG, 21), com Epifânio de Salamis, no século IV d.C. Depois disso, o tema foi praticamente esquecido no âmbito filosófico,1 vindo a ser retomado apenas no século XIX, circunscrito ao âmbito teológico e filológico. Por motivos óbvios, a descoberta dos textos de Nag Hammadi, no Egito, em 1946, aparece a Jonas com grande relevância: “do dia para a noite passamos de uma grande pobreza e dispersão documental a vermo-nos sacudidos por uma extraordinária riqueza de fontes originais não contaminadas por tradições secundárias” (RG, p. 29). Ainda que o autor lamente a lentidão dos progressos quanto ao conhecimento desses textos, ele não se absteve em/de reconhecer a sua importância, o que o levou a acrescentar à versão de 1962 do texto d’A Religião Gnóstica, um capítulo especial sobre o assunto.

O interesse de Hans Jonas se distancia das duas visões (teológica e filológica) e tenta se situar no âmbito estritamente filosófico, tendo como ponto de partida a analítica existencial herdada de Heidegger. Segundo suas próprias palavras:

Meu objetivo, de alguma maneira diferente da investigação precedente e ainda em marcha, ainda que complementário a esta, era de natureza filosófica: compreender o espírito que fala através destas vozes e, em sua luz, restaurar uma unidade inteligível na multiplicidade desconcertante de suas expressões. Minha primeira impressão ao entrar em contato com as provas testemunhais foi que existia um espírito gnóstico e, portanto, uma essência do gnosticismo em seu conjunto (…). Explorar e interpretar essa essência se converteu num assunto não apenas então de interesse histórico – pois lança uma grande luz na compreensão de um período crucial do mundo ocidental – mas também de um intrínseco interesse filosófico, já que nos situa frente a uma das mais radicais respostas do homem a sua situação – uma resposta cheia de grande penetração que, por sua vez, só uma posição radical poderia oferecer – ajudando-nos também em nossa compreensão do
conhecimento humano. (RG, p. 23).

A intenção de Jonas resulta evidente do ponto de vista filosófico, já que se trata de evidenciar não apenas um fato histórico, mas através dele, forjar uma compreensão do ser humano que se mostra por detrás dessas manifestações. Uma análise daquilo que Jonas chama de “vida espiritual” (RG, 27) de um tempo e que, segundo sua veia interpretativa, fornece uma interpretação atual de formas mais recentes, como o existencialismo e o niilismo contemporâneos. Nesse sentido, sua tarefa pode mesmo ser caracterizada como genealógica, no sentido nietzschiano do termo.

Segundo Pinsart (2002, p. 24), a metodologia da análise de Jonas contém três traços comuns “com aquele que ele aplicará mais tarde à biologia filosófica”. O primeiro traço diz respeito à pesquisa de uma “unidade como chave da inteligibilidade de uma multiplicidade manifesta” que seria, aqui, o princípio gnóstico e, na biologia, a liberdade; o segundo traço “a determinação desta unidade a partir de uma intuição pessoal ou de uma experiência própria”, aqui descrita pela autora como a intuição do parentesco entre o niilismo gnóstico e o existencialismo, na biologia filosófica, a experiência e o conhecimento corporal; e o terceiro traço seria a realização da “interpretação histórica percebida a partir do simples par complexo, do anterior para o posterior”, o que no caso da biologia, seria a interpretação das formas mais simples da vida a partir do próprio homem, e no caso do movimento gnóstico, o reconhecimento de um período de latência do pensamento oriental a partir de seu desenvolvimento ulterior. Veremos como a proposta hermenêutica alcança um grande sucesso e produz muitos frutos, como parte desse projeto analítico existencial, a melhor ontologia disponível na filosofia pós-guerra, que “permitirá uma análise sincrônica do dualismo niilista como posição respectiva do eu e do mundo pela negação recíproca” (FROGNEUX, 2001, p. 61), um esquema que ele mesmo passa a rejeitar em todo o seu projeto filosófico. Sua intenção é enfrentar o chamado “déficit niilista” (DEWITTE, 1993, p. 75) que  marca a “dicotomia antropológica, cosmológica e moral de tipo gnóstico, existencialista e subjetivo” (FROGNEUX, 2001, p. 63).

Nesse artigo levaremos em conta principalmente a Introdução, a primeira parte intitulada Literatura gnóstica: principais dogmas, linguagem simbólica e o epílogo do livro A religião gnóstica: a mensagem do Deus Estranho e os começos do cristianismo, obra publicada de forma mais “dinâmica” em 1952, como resultado da tese de doutorado defendida em 28 de fevereiro de 1928 (parte dela publicada 1930 e outra em 1934)… [PDF]

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