O anti-Prometeu: Cioran, crítico do progresso e da civilização

Transformando-nos em frenéticos, o cristianismo nos preparava, apesar de si mesmo, a engendrar uma civilização da qual ele mesmo é a vítima: por acaso não criou em nós demasiadas necessidades, demasiadas exigências? Necessidades e exigências interiores a princípio, que se degradariam e se tornariam exteriores, assim como o fervor de que emanavam tantas orações suspendidas bruscamente, um fervor que, não podendo desvanecer nem ficar sem emprego, pôs-se a serviço de deuses de reposição, forjando símbolos à medida de nossa nulidade. Estamos entregues a uma falsificação de infinito, a um absoluto sem dimensão metafísica, submersos na velocidade por não podermos está-lo no êxtase. Essa sucata ofegante, réplica de nossa inquietude, e esses espectros que as conduzem, esse desfile de autômatos, essa procissão de alucinados, aonde vão, que buscam? Que espírito de demência os impulsiona? Cada vez que estou a ponto de absolver os homens civilizados, cada vez que tenho dúvidas sobre a legitimidade da aversão ou do terror que me inspiram, basta que eu pense nas estradas do campo em um dia de domingo para que esse larvário motorizado me reafirme no meu asco ou em meus temores. Em meio a esses paralíticos ao volante que aboliram o uso das pernas, o pedestre parece um excêntrico ou um proscrito: logo será visto como um monstro. Nenhum contato mais com o solo: tudo o que nele afunda se tornou estranho e incompreensível para nós. Desenraizados, incapazes de nos identificar com o pó e com o lodo, conseguimos a façanha de romper não apenas com a intimidade das coisas, mas também com sua superfície. Neste ponto a civilização apareceria como um pacto com o diabo, se é que o homem ainda teria alguma alma para vender. CIORAN, Emil. “Retrato do homem civilizado”, in: La Chute dans le Temps

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