Rodrigo I. R. S. Menezes
Subitamente, necessidade de demostrar agradecimento, não apenas aos seres como também aos objetos, a uma pedra porque é pedra… Tudo parece então animar-se como se fosse para a eternidade. De golpe, inexistir parece inconcebível. Que esses calafrios se produzam, que possam produzir-se, mostra que a última palavra talvez não esteja na Negação.
Cioran, Écartèlement
Tendo dissipado meu dogmatismo em imprecações, que posso fazer senão ser cético?
Cioran, Silogismos da amargura
Proponho-me a examinar a interação entre duas atitudes teóricas distintas ao longo da obra de Emil Cioran, desde seus escritos de juventude em romeno até seus escritos de maturidade em francês: a dúvida cética e a negação, esta última interpretada pela dupla perspectiva do cinismo e do niilismo. O que me interessa é compreender como se dá a relação entre estes dois operadores teóricos e em que medida se complementam ou se excluem mutuamente nos escritos de Cioran. A razão do meu interesse está em que Cioran é muito frequentemente classificado como um cético tout court, o que parece não levar em conta uma dimensão significativa do seu pensamento mais além do ceticismo, e que se deve interpretar como uma forma sui generis de dogmatismo, um dogmatismo negativo, não propositivo nem construtivo. Ademais, os escritos de Cioran em si mesmos nos oferecem muitas razões para por em tela de juízo o seu alegado ceticismo. O que parece inegável é que o pensamento de Cioran, sobretudo na juventude, se mostra marcado por um conflito entre a afirmação e a negação (enquanto gesto vital primordial), ainda que essa dinâmica mude com o advento tardio do ceticismo em seu pensamento. É preciso analisar em que medida Cioran é um cético, e em que medida seria um espírito da negação, um predicador ao avesso, um dogmático negativo. Ainda que seja incontestável que o ceticismo é um tema cujo interesse teórico para Cioran se confirma a cada um de seus livros (mesmo que seja um interesse negativo, por desacordo com a postura cética, como parece ser o caso do jovem Cioran), permanece a questão de saber se o romeno é, com efeito, um cético, e, em caso positivo, de que tipo de ceticismo se trata. Para expor a mudança de perspectiva acerca da dúvida cética diante do conflito niilista entre a afirmação e a negação no pensamento de Cioran, pretendo me concentrar especialmente em dois de seus livros: Nos Cumes do Desespero (1934) e Breviário de Decomposição (1949), respectivamente o primeiro livro em romeno e o primeiro livro em francês – seus dois primeiros livros, o da estreia e o da reestreia, simbolizando respectivamente o nascimento e o renascimento de Emil Cioran.
A formação intelectual do jovem transilvano ocorre em grande parte sob o signo da cultura alemã Em matéria de filosofia, suas maiores influências são, de acordo com Ciprian Valcǎn,[1] Oswald Spengler, Otto Weininger, Georg Simmel e sobretudo Schopenhauer e Nietzsche. Cioran também frequenta os filósofos alemães mais consagrados como Kant e Hegel, ainda que logo os rejeite em nome de uma “filosofia lírica”[2]próxima da poesia e distante do conceito, da teoria, do sistema. José Thomaz Brum, em um artigo intitulado “Cioran e Schopenhauer: duas visões romenas”, expõe as perspectivas opostas de Ciprian Valcǎn e Marta Petreu no que concerne à dupla influência de Schopenhauer e Nietzsche na formação intelectual do jovem Cioran. Sinto-me inclinado a concordar com Valcǎn, que interpreta a obra de juventude de Cioran sob o signo predominante da filosofia nietzscheana. Segundo Thomaz Brum, Valcǎn “afirma que nos escritos cioraniano de juventude não há nenhuma adesão ao ‘pessimismo implacável’ de Schopenhauer. O que há aí é uma ‘visão heróica’, uma ‘intensificação do vivido’, marca visível de um nietzscheanismo exaltado”.[3]Arrisco afirmar que as desastrosas experimentações políticas do jovem romeno junto à Guarda de Ferro e suas infames convicções totalitárias de juventude (que integram textos como Schimbarea la față a României e outros artigos políticos publicados em jornais romenos de extrema-direita), têm como pano de fundo a filosofia nietzscheana da vontade de poder e do além-do-homem lida por um viés ideológico-nacionalista. A afinidade eletiva entre o pensamento alemão, e particularmente a filosofia de Nietzsche, e a ideologia da Guarda de Ferro, com a qual Cioran flerta quando jovem, parece ilustrar-se no lema invocado por ele em sintonia com o movimento fascista romeno dos anos 30: “um novo homem, uma nova nação”.
Quem nega demonstra possuir alguma certeza sobre aquilo que nega. E a negação é uma afirmação às avessas. Se o título desse texto quisesse exprimir a relação lógica e cronológica entre a dúvida e a negação em Cioran, teria de ser “da negação à dúvida”, pois para o autor romeno a negação – gesto primordial – precede a dúvida; seria algo como um impulso vital instintivo determinado pela condição ontológica própria do ser humano, marcado pelo dinamismo. Por tudo o que, em nós, é humano, estaríamos como que naturalmente inclinados à negação, ao passo que a epokhé cética, além de ser um estado excepcional, é a consequência, a culminação de um exame, de uma investigação tão rigorosa que deixa apenas pontos de interrogação. “A negação”, por sua vez lado, “não parte nunca de um raciocínio, mas de um não-sei-quê de obscuro e antigo. Os argumentos vêm depois, para justificá-la e apoiá-la. Todo não surge do sangue”.[4]
Se Cioran não tivesse se exilado em Paris e se não tivesse escrito seus livros franceses, provavelmente não se o tomaria, como se costuma fazer, por um cético. À evolução do seu pensamento entre o período pré-exílio, na Romênia, e o período pós-exílio, na França, corresponde um câmbio radical em sua posição a respeito do ceticismo. O ceticismo filosófico strictu sensu, enquanto posição filosófica refletida, é um acontecimento tardio, uma postura que Cioran só assumirá na maturidade. O que não significa que não esteja presente em seus escritos de juventude, muito embora o autor não se mostre muito disposto a praticá-lo nem como crítica dialético-argumentativa do dogmatismo nem como exercício de suspensão do juízo. Ademais, Cioran distingue entre dois tipos – e duas qualidade – de dúvida: por um lado, a dúvida cética propriamente dita (voluntária, metódica), e, por outro lado, uma dúvida orgânica, visceral, a “dúvida da carne”. Esta outra dúvida é uma dúvida voltada contra si mesmo e que afeta o indivíduo concretamente na totalidade do seu ser, levando-o ao desespero.[5]A dúvida abstrata, “cerebral”, e a dúvida concreta, existencial, orgânica. Detenhamo-nos nesta passagem de Nos Cumes do Desespero:
Duvidar de tudo e a pesar disso viver, eis um paradoxo que não é dos mais trágicos, pois a dúvida é menos intensa e menos tensa que o desespero. Não é sintomático que o tipo mais frequente de dúvida é o cerebral, em que, por conseguinte, o ser humano participa apenas com uma parte de seu ser, à distinção da participação total e orgânica no caso do desespero? Mesmo nas formas orgânicas e sérias da dúvida, a intensidade nunca é equivalente à do desespero. Certo diletantismo e um gênero particular de superficialidade caracterizam o ceticismo diante do desespero, esse fenômeno tão estranho e complexo. […]A dúvida é uma inquietude que se refere a problemas e coisas, causada pela consciência do caráter insolúvel de todas as grandes questões. Se os grandes problemas se resolvessem, o cético retornaria a seu estado normal. Que diferença da situação do desesperado que, com a solução de todos os problemas, não se tornaria menos inquieto, pois sua inquietude emana da estrutura de sua própria existência subjetiva.[6]
Como vemos, em seu primeiro livro Cioran menospreza o ceticismo teórico enquanto erige a dúvida concreta, sentida e vivida mais do que refletida, como a expressão do verdadeiro ceticismo. Em seus escritos franceses, por outro lado, o autor romeno pretende incorporar o ceticismo filosófico mais além da dúvida involuntária e orgânica. Mais do que isso, abraça o ceticismo fervorosamente, com paixão, corrompendo sua neutralidade impassível, enquanto se define como um “idólatra da dúvida, alguém que duvida em estado de ebulição, em transe; sou um fanático sem credo, um herói da flutuação”.[7] No Breviário, Cioran se define como um homem afligido pelo “hamletismo”, pela hesitação e pela insegurança, carente de convicções, respostas, objetivos, e que, ademais, enxerga na ausência de tudo isso o verdadeiro sinal de honestidade, de probidade intelectual. Um homem desenganado, sem esperanças nem expectativas, resignado, que mede o valor de um espírito não mais por sua força vital, por seu heroísmo da vontade, mas por sua capacidade de duvidar, de renunciar, de conter sua expansão vital. Numa palavra: ascetismo (e este é um traço fundamental que distingue o Cioran romeno de sua versão francesa). Paralelamente a sua indisposição à suspensão do juízo, o jovem Cioran despreza com veemência todos os ideais de sabedoria e todos os imperativos ascéticos.[8] Outro traço distintivo do pensamento pós-exílio de Cioran é sua decisão pela indecisão, sua opção de não optar, sua tomada de partido a favor da indefinição, sua adesão a um estado de permanente inadesão – enfim, o caráter suspensivo, retrátil, não-oficial e não-definitivo, paradoxal e aporético (um beco sem saída), do discurso cioraniano pós-exílio. O que Sloterdijk quer dizer com “todas as posições de um homem sem posição”.[9]Em História e Utopia (1960), Cioran escreve:
Não ter nunca a oportunidade de tomar partido, de decidir-me ou de definir-me: não há desejo que tenha com mais frequência. Mas nem sempre dominamos nossos humores, essas atitudes em germe, esses esboços de teoria. Visceralmente inclinados à estruturação de sistemas, nós os construímos sem descanso, sobretudo em política, domínio de pseudoproblemas, onde se dilata o mau filósofo que reside em cada um de nós, domínio do qual gostaria de afastar-me por uma razão banal, uma evidência que aparece a meus olhos como uma revelação: a política gira unicamente em torno do homem.[10]
Este pensamento paradoxal e aporético, abismal, obscuro por excesso de lucidez, aniquilado e aniquilador, lúcido, Fernando Savater descreve-o bem:
Existe um ponto de vista filosófico desde o qual o discurso pedagógico é impossível. O que se consegue ver a partir desse ponto cego do espírito – que chamaremos aqui de lucidez –, mais que dizer, apaga o dito; nega inclusive quando afirma – sua forma de afirmar é negar –; só fala para calar ou desmentir as palavras vigentes; não busca nem a persuasão nem o doutrinamento, nem a transmissão de nenhum conhecimento positivo: sua única tarefa, se é possível chamá-la assim, é o desengano.[11]
O desenraizamento e a distância mediadora do exílio (e também a adoção de um idioma estrangeiro) permitem que Cioran saque as últimas consequências da lucidez que é precipitada, ainda em sua juventude, pela experiência da insônia. Ainda que seja difícil determinar exatamente em que medida o câmbio de posição em direção a nenhuma posição pressupõe a suspensão do juízo, e em que medida pressupõe a negação de toda posição, é inegável que o velho Cioran pratica a dúvida e inclusive se esforça para isso, buscando vacinar-se contra a quimera dos dogmatismos, sobretudo dos “dogmas inconscientes” que jazem subterrâneos e silenciosos em cada um, e são tão mais perigosos quanto inconfessos e inauditos.
Cioran parece manter do começo ao fim (talvez devido ao seu temperamento, a sua personalidade, a suas idiossincrasias) uma inclinação à negação. Esta é uma tentação, um vício, a dúvida não; cede-se à tentação, mas acede-se à dúvida, que é, por sua vez, um estado inabitual, excepcional, insólito mesmo. As duas atitudes parecem confrontadas num perpétuo conflito no espírito de Cioran; a diferença é que, na fase francesa, Cioran se mostra mais interessado nas virtudes práticas do ceticismo, e também na ironia, que o impedem de levar-se demasiado a sério, ao ponto de absolutizar suas opiniões e tornar-se um fanático. A dúvida cioraniana está entranhada na negação e o seu ceticismo se confunde com um dogmatismo negativo. A negatividade de Cioran se torna a dúvida assim uma certeza negativa, certeza do “Insolúvel” e do “Irreparável”. É o caso de pensar de que maneira está presente em seus escritos franceses outra tendência de pensamento mais além do ceticismo: o niilismo. Seria Cioran um niilista? De que tipo? O autor romeno pouco utiliza o termo “niilismo” em seus textos, não sendo esta uma questão que se torna para ele objeto de teorização como o é para Nietzsche. Se o niilismo, enquanto problema filosófico, está presente no pensamento de Cioran, permanece no mais das vezes no plano do não dito. Ao que tudo indica, uma palavra que Cioran prefere não usar, se puder evitá-la. Nos Silogismos da Amargura (1952), o livro que se segue ao Breviário, Cioran faz uma confissão bastante retórica no que concerne à suas relações com o ceticismo e com o niilismo; pretende minimizar suas relações com o segundo, alegando que a dúvida lhe é mais natural, mais espontânea do que a negação: “Com um pouco mais de ardor no niilismo, me seria possível – negando tudo – sacudir minhas dúvidas e triunfar sobre elas. Mas só tenho o gosto da negação, não seu dom”.[12]
Seja na fase romena ou na francesa, Cioran emprega muito poucas vezes o termo “niilismo”, e somos levados a pensar sobre a razão de tanta parcimônia. Seria porque é, ou se sente, demasiado niilista, por sua própria natureza, por inclinação natural à negação absoluta, à destruição total? Seria para não vincular seu nome de maneira tão evidente ao de Nietzsche, reinscrevendo um conceito que o filósofo alemão examinou exaustivamente? Seria essa, ademais, a razão pela qual abraça o ceticismo com fervor em sua maturidade, como quem busca proteger-se de si mesmo? Um aforismo em particular contido em um de seus livros romenos, Amurgul Gîndurilor (“O crepúsculo do pensamento”), nos diz algo: “O niilismo é a forma limite da benevolência”.[13]O que Cioran quer dizer com niilismo? Ele não o define, não o explica, assim como não costuma demonstrar com argumentos exaustivos aquilo que pensa. E em que sentido seria o niilismo benevolente? Outro aforismo, este encontrado em Lacrimi şi Sfinţi (“Lágrimas e Santos”), seu quarto livro em romeno (resultado de uma crise religiosa), pode nos dar alguma pista sobre a questão: “Ter amado sempre as lágrimas, a inocência e o niilismo. Os seres que não sabem de nada e os que sabem de tudo. As crianças e os fracassados”.[14] Aqui o niilismo é associado ao conhecimento, a ser entendido no sentido de compreensão (da vida, dos homens), a um tudo-saber que resultaria em certo “fracasso” existencial por excesso de lucidez. Sentimento de não-pertença, de não-coincidência com o mundo e consigo mesmo, vazio, inaderência à vida: “O fracasso [ratage] é um paroxismo da lucidez. O mundo se torna transparente para o olho implacável daquele que, estéril e clarividente, já não se apega a nada. Mesmo inculto, o fracassado [le raté] sabe de tudo, vê através das coisas, desmascara e anula toda a criação. O fracassado é um La Rochefoucauld sem gênio”[15] A ambivalência do niilismo aqui (e seu paradoxo) parece consistir em que a tarefa de despertar os espíritos para que compreendam equivale a precipitar os homens na experiência indesejável do fracasso. Niilismo é a experiência do conhecimento levada às últimas consequências: a lucidez. Ademais, niilismo tem a ver com negação, com a afirmação do nada (o nada do ser, do pensamento, da linguagem), mas a negação também é vinculada por Cioran (sobretudo no Breviário) a outro capítulo da história do pensamento: o cinismo. Este, diferentemente do ceticismo, está ausente de seus livros romenos, entrando em cena apenas em seus escritos de maturidade. Niilismo e cinismo: matrizes da negação cioraniana; o niilista (que não diz seu nome) e o cínico: figuras cioraniana que representam o espírito da negação.
O ceticismo é concebido por Cioran com um caráter desvirtuado. O que distingue o ceticismo antigo do moderno é o advento do cristianismo. O cristianismo corrompeu o cristianismo e o anatematizou: “O grande pecado do cristianismo é haver corrompido o ceticismo. Um grego jamais teria associado o gemido à dúvida. Recuaria horrorizado ante Pascal e mais ainda ante a inflação da alma que, desde a época da Cruz, desvaloriza o espírito”. O espírito, o intelecto, a inteligência helênica: suplantados pela “alma” cristã, pelo “creio porque absurdo” (Tertuliano). Após o cristianismo, o ceticismo é a vingança dos espíritos ressentidos pela decepção de suas aspirações ao absoluto, dos frustrados da fé, dos místicos fracassados. De modo que “só os antigos foram verdadeiros céticos. Suas dúvidas, impregnadas de uma indulgência outonal e de uma felicidade desenganada, tinham estilo, como todas as coisas em seu ocaso”.[16] Analogamente, o cinismo será desvirtuado pelo cristianismo, degenerando-se em um niilismo da pura animalidade selvagem; a santidade cínica (a “divina animalidade”[17]) proscrita e demonizada em nome da santidade cristã; o cínico, que vive como animal selvagem para viver segundo a natureza, em oposição à cultura, à civilização humana, identificado ao demônio mesmo (arquétipo da desgraça), em nome da sobrenatureza e sua graça transcendente. Cioran não acredita na possibilidade moderna de um ceticismo puro, sereno, alegre, altivo, tal como o pirrônico, pois há tempos as trevas do cristianismo impregnaram nosso sangue. Doravante, duvidar é estar em pecado. O ideal de tranquilidade da alma é alheio ao ceticismo cioraniano e também o é a perspectiva da vida feliz esperada mediante a virtuosa suspensão do juízo cética. Aplicada ao negativo, a dúvida é um tranquilizador, um alívio; aplicada ao positivo, é perda de fundamento, logo, de segurança, fator de turbação, angústia, desespero. Mantém seu valor enquanto vacuna contra as ilusões que se engendram sobre si mesmo e sobre a vida, mas perde seu sentido filantrópico. Diferente do ceticismo de um Sexto Empírico, que diz que, “porque ama a humanidade, o cético quer curar pelo discurso, na medida do possível, a presunção e a precipitação (propéteian) dos dogmáticos”.[18] O cético pirrônico mantém uma preocupação pedagógico-curativa e, portanto, certo critério de saúde, equilíbrio, excelência; o cético cioraniano já não tem essa pretensão: seu ceticismo pretende apenas criticar as ilusões de saúde e de bem dos homens e apontar-lhes a sua enfermidade, o seu mal, sem poder oferecer-lhes nenhuma cura. Duvidar e duvidar-se, eis um bem que se pode fazer a si mesmo (ou nem mesmo isso), mas não aos outros, pois a dúvida e o questionamento no mais das vezes não interessam a ninguém[19] (por isso mesmo Sócrates incomodava seus concidadãos como um “moscardo” ou uma “arraia elétrica”), poucos estão predispostos a ela, como poucos estão dispostos a sacrificar suas bem-aventuradas ilusões em nome da sensatez.[20] A propósito do seu caráter desvirtuado, o ceticismo é redefinido por Cioran como o “sadismo das almas atormentadas”, uma reação de inveja contra aqueles que se instalam confortavelmente no interior de uma ficção a qual, ainda por cima, julgam ser a verdade, um ato ressentido de vingança contra aqueles que o cético julga injustamente felizes graças a suas certezas e pretensas verdades. Pois,
Já que tudo nos fere, por que não nos encerrar no ceticismo e tentar buscar nele um remédio para nossas feridas? Seria outro tipo de engano, pois a dúvida é apenas um produto de nossas irritações e de nossas queixas, e o instrumento que o estropiado utiliza para sofrer e fazer sofrer. Se demolimos as certezas, não é por escrúpulo teórico ou por jogo, mas pelo furor de vê-las desaparecer, por desejo também de que não pertençam a ninguém já que não as possuímos mais. E a verdade, com que direito a possuiriam os outros? Por que injustiça se revelaria àqueles que valem menos do que nós? Penaram por ela? Velaram para merecê-la? Enquanto que nós nos esfalfamos em vão para alcançar a verdade, os outros se pavoneiam com ela como se lhes estivesse reservada por um desígnio da providência. A verdade, no entanto, não é seu patrimônio, e, para impedir que a reivindiquem, os persuadimos de que, quando julgam possui-la, trata-se na realidade de uma ficção. Para colocar a salvo nossa consciência, gostamos de descobrir neles ostentação e arrogância, o que nos permite perturbá-los sem remorsos e, ao inocular-lhes nossos assombros, torna-los tão vulneráveis e infelizes quanto nós mesmos.[21]
Outra variante do aspecto desvirtuado do ceticismo moderno concebido por Cioran é incorporada pela figura da “prostituta”, conforme elaborada no aforismo do Breviário intitulado “Filosofia e prostituição”. Neste sentido, o cético, para sobreviver no circuito dogmático dos homens e conviver com eles, seria como que marcado pela mesma liberalidade interesseira que caracteriza, segundo Cioran, a prostituta. Em vez de criticar, refutar, desmentir os outros, aceita, finge aceitar, por interesse ou necessidade, todas as opiniões e todos os prejuízos.
O filósofo, desiludido dos sistemas e das superstições, mas ainda perseverante nos caminhos do mundo, deveria imitar o pirronismo de trottoir que exibe a criatura menos dogmática: a prostituta. Desprendida de tudo e aberta a tudo; esposando o humor e as idéias do cliente; mudando de tom e de rosto em cada ocasião; disposta a ser triste ou alegre, permanecendo indiferente; prodigando os suspiros por interesse comercial; lançando sobre os esforços de seu vizinho sobreposto um olhar lúcido e falso, ela propõe ao espírito um modelo de comportamento que rivaliza com o dos sábios. Não ter convicções a respeito dos homens e de si mesmo: tal é o elevado ensinamento da prostituição, academia ambulante de lucidez, à margem da sociedade como a filosofia. “Tudo o que sei aprendi na escola das putas”, deveria exclamar o pensador que aceita tudo e recusa tudo, quando, a exemplo delas, especializou-se no sorriso cansado, quando os homens são, para ele, apenas clientes, e as calçadas do mundo o mercado onde vende sua amargura, como suas companheiras seu corpo.[22]
No livro seguinte, Silogismos da Amargura (1952), Cioran reformula essa noção do ceticismo como uma estratégia de sobrevivência em meio aos homens de modo mais direto e em termos mais filosóficos, sem a referência à prostituta: “Obrigando-nos a sorrir, sucessivamente, para as ideias daqueles a quem mendigamos, a Miséria converte nosso ceticismo em ganha-pão”.[23] Talvez aqui o cético e o cínico se encontrem, ou pelo menos se aproximem, no pensamento de Cioran, no sentido de que, para manter uma vida cínica à margem da sociedade, sem ter de se submeter-se às suas atividades convencionais (leia-se: trabalho), para manter a liberdade conforme a idealiza, é necessário estar disposto – e preparado – para enfrentar certas humilhações e privações. Liberdade e pobreza são indissociáveis para Cioran, o que não significa que todo indivíduo pobre seja livre.
Ainda outra figuração do cético desvirtuado se encontra também no Breviário. Neste caso, uma forma proativa de corrupção. Trata-se da imagem do “Corruptor”, estrangeiro enigmático e obscuro, suspeito, que, instalado no seio da civilização, se imbui da missão de corromper as certezas soníferas dos espíritos e transmitir-lhes outra qualidade de corrupção:
“Como passaram tuas horas? A lembrança de um gesto, a marca de uma paixão, o fulgor de uma aventura, uma bela e fugaz demência – não há nada disto em teu passado; nenhum delírio leva teu nome, nenhum vício te honra. Passaste sem deixar vestígios; mas qual foi teu sonho?”
– “Queria semear a Dúvida até nas entranhas do globo, impregnar com ela a matéria, fazê-la reinar onde o espírito jamais penetrou e, antes de alcançar a medula dos seres vivos, sacudir a quietude das pedras, introduzir nelas a insegurança e os defeitos do coração. Arquiteto, teria construído um templo à Ruína; predicador, revelado a farsa do coração; rei, hasteado a bandeira da rebelião. Como os homens nutrem um desejo secreto de repudiar-se, teria estimulado em toda parte a infidelidade a si mesmo, mergulhado a inocência no estupor, multiplicado os traidores de si mesmo, impedido multidões de corromperem-se no podredouro das certezas.”[24]
A Dúvida assume aqui um caráter retoricamente violento, perverso, diabólico. Se substituíssemos “dúvida” por “negação”, o texto ainda assim faria sentido. O ceticismo neste caso mais parece um niilismo, a um projeto negativo. A noção de “corrupção” associada ao ceticismo está atravessada de ambiguidade e ironia, de onde o paradoxo final: o objetivo do corruptor é impedir as pessoas de corromperem-se no podredouro das certezas, corrompendo-as com a Dúvida. Ou seja, as certezas pressupõem certa corrupção do espírito, mas as dúvidas também. Corrupção contra corrupção? Cioran joga ironicamente com as perspectivas, notadamente a do outro, leitor-multidão, e a do escritor-corruptor, estrangeiro e bárbaro, obscuro, terrível, que pretende “corromper” as certezas sólidas nas quais se assenta a civilização. No caso da figura da prostituta, essa “pirrônica de trottoir” que não mantém convicções sobre si mesma nem sobre ninguém, o ceticismo assume uma feição cínica, enquanto que no caso do “corruptor”, o ceticismo adquire um caráter mais negativo – niilista.
Há fundamentalmente dois movimentos que conduzem o pensamento e a escrita de Cioran: a dúvida e a negação, paralelas, muitas vezes convergentes, complementárias, reciprocamente generosas, mas nunca unitárias, idênticas, nunca efetivamente coincidentes. Há uma afinidade e um conflito em Cioran entre a negação e a dúvida. Na maturidade, essa relação ambivalente e contraditória será formulada em termos de uma dialética entre o cético e o demônio. Em La chute dans le temps (1964), Cioran contrapõe um ao outro no capítulo intitulado interrogativamente: “É cético o demônio?” Sua resposta é não, pois, muito embora possa se passar por cético por interesse próprio (interesses não céticos), o demônio permanece sendo por natureza um espírito dogmático, um negador, contraditor, denunciador, acusador. Não importa se, “para alcançar seus fins, o demônio, espírito dogmático, empresta ocasionalmente, por estratagema, as vias do ceticismo”,[25] pois é no fundo avesso à suspensão do juízo, à indiferença cética. O demônio é um ser que toma partido contra o Criador e sua criação. Nada mais estranho ao demônio, espírito dogmático negativo, do que a epokhé, a ataraxia, pois estas pressupõem uma exaustiva investigação e um permanente estado de alerta especulativo, de crítica teórica (estado mais voltado ao contemplativo), enquanto que negar é agir, é estabelecer um propósito (ainda que negativo, destrutivo), tomar uma decisão e partir para a ação. A conclusão paradoxal de Cioran é de que a condição do demônio, espírito da negação, é mais favorável, em termos existenciais e vitais, do que aquela do cético, pois o negador ainda tem a vantagem de participar das coisas da vida e interagir com o mundo, ainda que negativamente;[26] tem a chance de assumir um papel, de atuar, enquanto que o cético (figura insólita por excesso de bom senso), indiferente, neutro, infértil, pois fadado à indecidibilidade, estaria como que à margem das coisas e da vida mesma, excluído da dinâmica delirante que engendra os acontecimentos, um fantasma para o qual a irrealidade se encontra dentro e fora de si.
O drama do duvidador [douteur] é maior que aquele do negador, pela razão de que viver sem objetivo é muito mais incômodo do que viver por uma má causa. Pois bem, o cético não conhece nenhum objetivo: sendo todos igualmente frágeis e nulos, qual escolher? A negação por sua vez equivale a um programa; ela pode ocupar, pode inclusive preencher a existência mais exigente, sem contar que é charmoso negar, sobretudo quando é Deus que o sofre: a negação não é vacuidade, mas plenitude, uma plenitude inquieta e agressiva. Considerando-se que a salvação reside no ato, negar é salvar-se, é perseguir um desígnio, interpretar um papel. Compreende-se porque o cético, tão logo arrependido de ter avançado em um terreno perigoso, inveja o demônio; é que nada pode impedir que a negação seja, apesar das reservas que inspira, uma fonte de ação ou de certeza: quando se nega, sabe-se o que se quer; quando se duvida, termina-se por não mais saber.[27]
Para o bem ou para o mal (e tardiamente Cioran parece inclinar-se absolutamente a favor do ceticismo como a grande virtude intelectual), Cioran enxerga o cético como uma figura extraordinária, excepcional, exótico, surpreendente, pois aparentemente alheio e imune aos delírios, ficções, enganos, equívocos, que põem a vida humana em movimento. Contrariamente a todo ideal de tranquilidade da alma, a dúvida é representada aqui como fator de inquietação, desconforto, desocupação, tédio, e também como condição da apatia, abulia, em última instância mortificação do vivente. Por um lado, é um mistério que possam existir espíritos que se comprazem na dúvida e que dela necessitam, que a cultivam, espíritos capazes de viver em permanente suspensão do juízo, sem crenças nem convicções, na mais alegre indiferença. Por outro lado, o cético, “o homem menos misterioso que existe”, “a partir de determinado momento não é mais deste mundo”.[28] Pois o homem é, conforme somos instruídos no aforismo intitulado “Os dogmas inconscientes” do Breviário de Decomposição, um ser dogmático por natureza, naturalmente propenso à afirmação e à negação, a crer e assumir como verdade, escolher, decidir, aderir, tomar partido, agir. Essa dinâmica antropológica marcada pela parcialidade, pela diferença, pelo desequilíbrio e pela desmedida, nos remete a Écartèlement, um dos últimos livros de Cioran (1983), em que ele abre o primeiríssimo capítulo (intitulado “As duas verdades”) da seguinte forma:
Segundo uma lenda de inspiração gnóstica, uma luta foi destravada no céu entre os anjos, na qual os partidários de Miguel venceram aqueles do Dragão. Os anjos que, indecisos, se contentaram em assistir foram relegados aqui abaixo a fim de fazer a escolha à qual não se puderam resolver lá em cima, escolha tão mais penosa quanto não tinham nenhuma recordação do combate e muito menos de sua atitude equívoca. Assim, a arrancada da história teria como causa uma flutuação, e o homem resultaria de uma vacilação original, da incapacidade em que se encontrava, antes de seu banimento, de tomar partido. Lançado sobre a terra para aprender a optar, será condenado ao ato, à aventura, na qual poderá brilhar apenas matando em si mesmo o espectador. Se apenas o céu permite a neutralidade até certo ponto, a história, pelo contrário, aparecerá como a punição daqueles que, antes de encarnarem, não encontraram nenhuma razão para se aliar a um lado mais do que ao outro. Compreende-se porque os humanos são tão apressados para abraçar uma causa, para se aglutinarem, para se juntarem em torno de uma verdade.[29]
O dogmatismo aparece então como a expressão essencial da natureza decaída e pecaminosa do ser humano, a consequência histórica de sua vacilação original, de sua incapacidade de tomar partido no combate originário entre as forças do bem e as forças do mal. O homem é lançado à terra para expiar essa falta original, sendo a existência, em que é constrangido a agir, a definir-se, sua punição por não ter sabido posicionar-se arquetipicamente. É neste sentido que se pode interpretar Cioran quando afirma que “o cético não é deste mundo”, ou seja, no sentido de que o cético parece escapar a essa sina, permanecendo a ela indiferente assim como se portaram seus arquétipos, os anjos indecisos que se limitaram a observar, como espectadores, o espetáculo do combate cósmico, sem dele participar. O cético não padece do ágon da decisão, da escolha com vistas à ação, pois já se decidiu de antemão pela indecidibilidade e pela indiferença. O que condiz com a ideia cioraniana de que ceticismo e felicidade, plenitude, paz de espírito, não andam juntos. Estando o homem naturalmente inclinado ao dogma, a dúvida, a incerteza, a vacilação, a insegurança – tudo isso será fator de angústia e de sofrimento.
Enfim, se há ceticismo em Cioran, deve-se assinalar que não é um ceticismo ortodoxo; trata-se, pois, de um ceticismo frenético e apaixonado, desvirtuado e assumidamente contraditório, uma “idolatria da dúvida”. Há uma polifonia, uma pluralidade de vozes no discurso cioraniano que não podem se reduzir à figura do cético; todas elas mantêm uma relativa autonomia subjetiva, ao mesmo tempo em que se misturam e se confundem. O ceticismo é apenas uma destas vozes (e bastante expressiva), mas não a única. Nem poderia sê-lo. O cinismo, o gnosticismo, o budismo, a mística, o ateísmo, o niilismo – todos estes representam tendências de pensamento, pois afinidades intelectuais e espirituais, cujas proposições e princípios não poderiam ser afirmados e postulados senão apesar de todo e qualquer ceticismo rigoroso. Por tudo o que há de enunciativo, discurso, e, em última instância, literário, criativo em sua obra (o fato mesmo de escrever), o romeno é tudo menos cético. “Devemos desconfiar das luzes que temos em nós mesmos. O conhecimento que temos de nós mesmos indispõe e paralisa nosso demônio. É aí que se deve buscar a razão pela qual Sócrates não escreveu nada”.[30] Pois a skepsis (assim como o autoconhecimento) é incompatível com a escritura, e, em última instância, com a vida mesma, que necessita de ilusões, ficções, de certo jogo de reflexos e dissimulação, de claro-escuro, para manter-se. Cioran é mais e menos que um cético; um cético que afirma o absoluto da dúvida e duvida de sua própria dúvida enquanto absoluto. Cioran suspende o ceticismo para escrever, criar, negar, pois só se escreve e se cria, assim como só se nega ou afirma enquanto se preserva algum grau de ilusão, de equívoco, de sombras interiores, na medida em que não se tornou completamente transparente a si mesmo; trai a dúvida cética para dogmatizar, sem nenhuma pretensão de verdade filosófica ou científica, sobre as questões que lhe parecem tão indubitáveis quanto preocupantes: a maldição do homem trágico, a fatalidade da história, o nada triunfante que rouba realidade do que é, o absoluto da morte e o triunfo do sofrimento da vida, o mal do mundo…
A escritura de Cioran tem como modelo a arte musical, uma prática do ritmo, um exercício de harmonia formal combinada ao teor semântico das frases, ensaiadas e aperfeiçoadas, reformuladas e incrementadas, ou simplificadas, a cada página e a cada livro. O pensamento cioraniano é trágico, e a música é a expressão por excelência de uma possível superação do conflito trágico e de uma reconciliação com a vida. A música suprime provisoriamente as dúvidas e as certezas negativas enquanto dura a experiência musical. A música é o ser em puro ato, o absoluto capturado no tempo. Cioran escreve em um aforismo intitulado “Música e ceticismo” contido no Breviário de Decomposição:
Busquei a Dúvida em todas as artes e só a encontrei camuflada, furtiva, dissipada nos entreatos da inspiração, surgida do relaxamento do impulso; mas renunciei a buscá-la – mesmo sob essa forma – em música; aí não poderia florescer; ignorando a ironia, a música procede não das malícias do intelecto, mas dos matizes ternos ou veementes da Ingenuidade – tolice do sublime, irreflexão do infinito… Como o chiste não possui equivalente sonoro, chamar um músico de inteligente é denegri-lo. Este atributo o diminui e não tem lugar nessa cosmogonia lânguida onde, como um deus cego, improvisa universos. Se fosse consciente de seu dom, de seu gênio, sucumbiria ao orgulho; mas é irresponsável; nascido no oráculo, não pode compreender-se a si mesmo. Cabe aos estéreis interpretá-lo: ele não é crítico, como Deus não é teólogo.[31]
Cioran só deixa de duvidar para negar, mas a escritura é, em si mesma, um ato afirmativo. Mais além do ceticismo tardio que só virá a conhecer após estar bastante familiarizado com a negação,[32] e tê-la muito praticado, subsiste um niilismo pessimista ao estilo de Schopenhauer que o faz agitar-se num embate perpétuo entre a “tentação de existir” e a negação da vida. Cioran não é um cético convencional: “A dúvida metódica me repugna mais do que tudo. Duvidar, de acordo, mas só quando me dá vontade”;[33] é também um espírito da negação, que escreve para contradizer, falsificar, desmentir, acusar, recusar, negar – numa palavra: Não. Escrever para dar vida ao nada e voz ao silêncio, para ocupar-se e perder-se na busca, tão vã quanto absurda, pela expressão do impossível. E também a música, única arte capaz de transfigurar o nada em tudo, isto é, em Deus. Pode-se dizer que o limite positivo do ceticismo cioraniano é a música, e o negativo, o mal. Cioran é um teórico do mal, dir-se-ia mesmo um teólogo, muito embora um “teólogo ateu”.[34] Toda sua obra pode ser lida como uma longa meditação sobre o problema do mal em chave metafisica.. O mal só pode ser explicado à custa de Deus, assim como Deus tem a seu favor a ideia de mistério para que seja possível conciliar sua existência com a existência do mal no mundo. Sem dúvida há um obstinado exercício da dúvida cética em Cioran, mas sua suspensão do juízo está longe de ser definitiva. Incapaz de encontrar um fundamento positivo neste mundo em que o mal parece tal efetivo e tão substancial quanto o bem (se não mais), a negação é o que subsiste para além do ceticismo de Cioran, e que, por sua bivalência no que concerne à dialética negação-afirmação, abre um acesso possível a uma transcendência para além do grau zero de conhecimento imposto pela dúvida cética.
O problema fundamental do pensamento cioraniano, e que o autor romeno responde em termos de niilismo, é o problema do mal. Toda sua obra pode ser vista como uma figuração, como uma representação poético-filosófica do mal. Mas para conhecer o mal e comunica-lo, para conjurá-lo é preciso atravessá-lo, experimentá-lo, sofrê-lo e mesmo engendra-lo, mesmo que seja virtual e abstratamente.[35] A mímesis de um mundo diabólico termina por tornar diabólico aquele mesmo que o mimetiza, pois, como afirma Nietzsche, “quem combate monstruosidades deve cuidar para que não se torne um monstro. E se você olhar longamente para um abismo, o abismo também olha para dentro de você”.[36] Nesta passagem tardia, de seu penúltimo livro, Exercícios de Admiração, em que se refere à mística, mas sequer menciona o ceticismo em uma tentativa de autodescrição, Cioran se confessa um espírito da negação, um destruidor; o pessimista metafísico que representa o horror da existência é, ele mesmo, mais que um cínico, o diabo em pessoa, o promotor do nada e acusador dos homens, da vida, de Deus:
O que sempre me seduziu na negação é o dom de tomar o lugar de tudo e de todos, de ser uma espécie de demiurgo, de dispor do mundo como se tivesse colaborado na sua aparição e depois tivesse o direito, e mesmo o dever, de precipitar sua queda. A destruição, consequência imediata do espírito de destruição, corresponde a um instinto profundo, a um tipo de inveja que cada um certamente sente no fundo de si mesmo com relação ao primeiro dos seres, à sua posição e à ideia que representa e simboliza. Embora frequentasse os místicos, no meu foro íntimo estive sempre do lado do Demônio: não podendo me igualar a ele pela força, tentei ser equivalente ao menos pela insolência, pela aspereza, pelo arbítrio e pelo capricho.[37]
Pensador noturno, das trevas, Cioran tenta nos comunicar o horror do mundo privado de suas aparências. O sentimento fundamental vinculado à realidade tal qual Cioran a descreve é o horror, mas esta impressão estética vem acompanhada de uma beleza formal, de um estilo jovial e harmonioso, o que torna os escritos de Cioran uma perfeita exemplificação do axioma hesiódico: Zeus fez belo o mal. Conforme escreve Sylvie Jaudeau, Cioran “não encontrou a Deus, mas o mal […] Busca comunicar-nos seu saber funesto lançando perante nossos olhos essa parte de trevas que predomina e se perpetua até no vestígio material de sua escritura, pelo excesso da forma sobre o sentido que chamamos literatura. […] A obra de Cioran, animada por uma vitalidade autônoma, é, em si mesma, uma figuração do mal”.[38]Como pensa o romeno, só temos escolha entre a ilusão e o desespero, consequência lógica da lucidez. O ceticismo é um exercício de desfascinação, mas não é uma saída, não oferece nada nem de positivo nem de negativo. Seguimos em um mundo em que é impossível duvidar do mal e onde inclusive a necessidade da dúvida é um mal. Concluo com Cioran: “O verdadeiro saber se reduz às vigílias nas trevas: só o conjunto de nossas insônias nos distingue dos animais e de nossos semelhantes. Que ideia rica e estranha foi alguma vez fruto de um adormecido? […] O dia é hostil aos pensamentos, o sol os obscurece: só florescem em plena noite… Conclusão do saber noturno: quem chega a uma conclusão tranquilizadora sobre o que quer que seja dá provas de imbecilidade ou de falsa caridade. Quem achou algum dia uma só verdade alegre que fosse válida? Quem salvou a honra do intelecto com propósitos diurnos? Feliz daquele que pode dizer: ‘Tenho o saber triste’.”[39]
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BIBLIOGRAFIA:
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Notas de rodapé
[1] Cf. VALCĂN, C. La concurrence des influences françaises et allemandes dans l’oeuvre de Cioran.
[2] CIORAN, E. Nos Cumes do Desespero, p. 53.
[3] BRUM, José Thomaz. “Cioran e Schopenhauer: duas visões romenas”, Ethic@ – Revista Internacional de Filosofia da Moral, v. 11, no. 2, 2012, p. 102.
[4] CIORAN, E. De l’inconvenient d’être né, « Oeuvres », p. 1288-1289.
[5] “Sem nossas dúvidas sobre nós mesmos, nosso ceticismo seria letra morta, inquietude convencional, doutrina filosófica”; “O ceticismo que não contribui para a ruína de nossa saúde é apenas um exercício intelectual.” IDEM. Silogismos da amargura, pgs: 11; 56.
[6] CIORAN, E. Nos Cumes do Desespero, p. 52-53.
[7] IDEM. Écartèlement, « Oeuvres », p. 1450.
[8]“Tenho mais estima pelo homem de desejos contrariados, desgraçado no amor e desesperançoso, do que pelo sábio gélido, de uma impassibilidade orgulhosa e repugnante. Todos os sábios deste planeta deveriam ser irremediavelmente destruídos para que a vida continuasse a existir assim como é: cega e irracional”. IDEM. Nos Cumes do Desespero, p. 105.
[9] “A obra de Cioran pode ser considerada como um conjunto de exercícios, a meio caminho entre a ginástica e a ascese, experimentando todas as posições do homem sem posição.” SLOTERDIJK, P. « Le prieur de la Sainte Folle Témérité », Magazine Littéraire (dossier « Cioran – Désespoir : mode d’emploi »), maio de 2001, p. 54.
[10] CIORAN, E. História e Utopia, p. 30.
[11] SAVATER, F. Ensayo sobre Cioran, p. 28.
[12] CIORAN, E. Silogismos da Amargura, p. 31.
[13] IDEM. Le Crépuscule des Pensées, in : « Oeuvres », p. 493.
[14] IDEM. Des larmes et des saints, in : « Oeuvres », p. 321.
[15] CIORAN, E. Des larmes et des saints, in : « Oeuvres », p. 321-322.
[16] CIORAN, E. Des larmes et des saints, in : « Oeuvres », p. 300.
[17] A expressão é de Maria Daraki. Cf. El mundo helenístico: cínicos, estoicos, epicúreos. Madrid: Akal, 2000, p. 11.
[18] SEXTO EMPÍRICO, Hipotiposes Pirrónicas, III, 280, in: PORCHAT, Oswaldo. Rumo ao ceticismo. São Paulo: Unesp:, 2006, p. 160.
[19] “Mas que função atribuir à dúvida? A que necessidade responde? Quem, fora daquele que duvida, precisa dela? Infortúnio gratuito, agonia em estado puro, não corresponde a nenhuma das exigências positivas do vivente. Sem mais nem porque, coloca tudo sempre em questão, duvidar mesmo em sonho!” CIORAN, E. La Chute dans le Temps, « Oeuvres », p. 1107.
[20] “O cético gostaria de sofrer, como o resto dos homens, pelas quimeras que fazem viver. Não conseguem: é um mártir do bom senso”. IDEM. Silogismos da Amargura, p. 29.
[21] CIORAN, E. História e Utopia, p. 98.
[22] IDEM. Breviário de Decomposição, p. 86.
[23] IDEM. Syllogismes de l’amertume, in : « Oeuvres », p. 755.
[24] CIORAN, E. Breviário de Decomposição, p. 153.
[25] IDEM. La chutes dans le Temps, « Oeuvres », p. 1107.
[26] “Destruir é agir, é criar ao contrário, é, de uma maneira muito especial, manifestar solidariedade com o que é. Enquanto agente do não-ser, o Mal se insere na economia do ser, é portanto necessário, desempenha uma função importante, vital mesmo”. CIORAN, E. La Chute dans le Temps, in : « Oeuvres », p. 1107.
[27] IDEM. Ibid., p. 1107-1108.
[28] CIORAN, E. Cahiers, p. 80.
[29] IDEM. Écartèlement, in : « Oeuvres », p. 1409.
[30] CIORAN, E. De l’Inconvenient d’Être Né, « Oeuvres », p. 1316.
[31]CIORAN, E. Breviário de Decomposição, p. 109.
[32]“Do meu país eu herdei o niilismo inato, seu traço fundamental, sua única originalidade. Zădărnicie [vaidade, inutilidade], nimicnicie [nadidade] – essas palavras extraordinárias, não, essas não são palavras, são a realidade do nosso sangue, do meu sangue.” IDEM. Cahiers, p. 685.
[33] IDEM. Aveux et Anathèmes, in: « Oeuvres », p. 1700.
[34] IDEM. Entretiens, p. 164.
[35] Insisto na importância, não apenas no nível abstrato de uma distinção conceitual, mas também no que concerne àquela que seria a démarche filosófico-existencial concebida por Cioran, em matéria de práxis e de teoria: “É fácil fazer o mal: todo mundo o consegue; assumi-lo explicitamente, reconhecer sua inexorável realidade é, por outro lado, uma proeza insólita. Na prática, qualquer um pode rivalizar com o diabo; na teoria não ocorre o mesmo. Cometer horrores e conceber o horror (l’horreur) são dois atos irredutíveis um ao outro: não há nada em comum entre o cinismo vivido e o cinismo abstrato”. CIORAN, E. História e Utopia, p. 78
[36] NIETZSCHE, F. Além do Bem e do Mal, p. 79.
[37] Exercícios de admiração, p. 126.
[38] JAUDEAU, S. Cioran ou le dernier homme, p. 212.
[39] CIORAN, E. Breviário de Decomposição, p. 144.