E. M. CIORAN. “Le style comme aventure”, in La tentation d’exister. Paris: Gallimard, 1995, p. 894-901.
Traduzido por Rodrigo Menezes e publicado na Traduzires – Revista eletrônica da Pós-Graduação em Tradução da Universidade de Brasília (UnB), vol. 2, no. 2, 2022.
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Com certezas, o estilo é impossível: a preocupação com a expressão é própria dos que não podem adormecer em uma fé. Por falta de um apoio sólido, agarram-se às palavras — sombras de realidade —, enquanto os outros, seguros de suas convicções, desprezam sua aparência e descansam comodamente no conforto da improvisação.
Silogismos da amargura
Este aforismo, pertencente ao livro que antecede La tentation d’exister, resume bem o que está em questão em “O estilo como aventura”, de E. M. Cioran (1911-1995) Neste ensaio, o autor romeno de expressão francesa (mais conhecido por seu estilo aforismático) disserta sobre o papel do estilo na escrita, a relação entre pensamento e linguagem, o cuidado da forma, das escolhas linguísticas em termos retórico-poéticos, e os conteúdos que se pretende veicular. Questiona-se a relação entre a busca pela a verdade e a preocupação com o estilo, e, entre ambas, a presença de certo ceticismo acerca do estatuto e do alcance das palavras em relação com a realidade que pretendem exprimir. A questão da linguagem suscita o mais vivo interesse da parte deste pensador – marginal, heterodoxo – a quem repugnavam todas as disciplinas especializadas e instituídas em torno do fenômeno da linguagem. Seu interesse por ela tinha motivações profundamente interessadas, dir-se-ia viscerais, como se a maestria da linguagem (e de uma língua em particular, o francês) fosse para ele uma questão de vida ou morte, sua salvação mesma. O drama de Cioran é o de saber-se dividido entre o ceticismo esterilizador e a necessidade existencial de escrever, a exigência terapêutica da criação literária. No Breviário de decomposição (1949), sua primeira publicação francesa, ele expõe sua visão cética e desencantada sobre o estatuto – negativo – da linguagem e, em última instância, da cultura: “Queremos, à força, ver o fundo das palavras? Não se vê nada, pois este, separado da alma expansiva e fértil, é vazio e nulo. O poder da inteligência exercita-se em projetar sobre ela um brilho, em poli-lo e torná-lo deslumbrante; este poder, erigido em sistema, chama-se cultura – fogo de artifício em um cenário de nada.”
O texto abrange uma temática que estava na pauta dos círculos filosóficos, franceses e alhures, de meados do século XX: a relação entre linguagem e escrita, história e discursividade, língua e mentalidade; revela um escritor estrangeiro (un metéque) que viria a dominar, ao nível dos melhores escritores autóctones, a língua francesa, emulando, com uma propriedade notável, o classicismo estilístico característico da cultura francesa do século XVIII. Numa auto-referência implícita, Cioran evoca os arquétipos do sofista (aparentado ao filósofo, ainda que não dogmático, mas de inclinação cética) e do artista, sem se identificar nem a um nem ao outro, mas sugerindo, no que diz respeito a si mesmo, uma posição indeterminada a meio caminho entre ambos – nem puramente filósofo (“sofista”), nem puramente poeta: um “sofista da literatura”. Há algo de friamente intelectual, de calculado, na antípoda da ingenuidade e da irreflexão características do poeta (verdadeiro demiurgo verbal), na preocupação com o estilo, o que o torna um elemento chave no escritor ensaístico e prosador, em contraste com o poeta. Esta e outras fórmulas, como o “estrangeiro desembestado”, não poderiam ser mais bem predicadas ao próprio autor, que, de origem romena, se exilaria em Paris e adotaria definitivamente o francês como língua de expressão. Cioran seria considerado, pelo poeta Saint-John Perse (1887-1975), o maior prosador de expressão francesa desde Paul Valéry.
A França do século XVIII é para Cioran o zênite da “aventura do estilo” no Ocidente, o apanágio da civilização em matéria da arte do bem-dizer e do bem-escrever. Segundo ele, o universo francês dos salões – com o ceticismo e a frivolidade que lhe seriam característicos, sua valorização das aparências – seria tributário da antiga sofística com sua astúcia verbal; a reflexão sobre as palavras resultaria na incerteza paralisante que se segue ao desvelamento de seu fundo vazio; de onde a perspectiva do estilo como último recurso, “apoio sólido”, ao qual se agarrar para dar uma aparência ao vazio, para manter a discrição perante os abismos do ser, do pensar e do dizer, em que reina o horror. Uma vez na França, Cioran toma como paradigma de estilo o classicismo do século XVIII, com a perfeição cristalina de sua prosa inteligente; toma distância dos escritores franceses contemporâneos, busca um modelo linguístico consagrado, ultrapassado mesmo, o que lhe permite contrastar a atualidade de seu pensamento com a antiguidade de um estilo que se pretende perene, atemporal, absoluto. Espírito da claridade, da transparência, da exatidão geométrica, a essência da língua francesa moderna – refinada e depurada até ao extremo – seria, na percepção do estrangeiro, seu excesso de claridade, sua precisão cirúrgica, sua carência de irregularidades, de imperfeições, sua rigidez desconcertante e vertiginosa. Semelhante a uma “camisa-de-força” linguística, o francês lhe parece um idioma nada propício ao lirismo, ao devaneio, ao delírio ou à loucura; a língua da lucidez por excelência, como ele sugere no livro seguinte, História e utopia (1960), “com todas as suas palavras pensadas e repensadas, refinadas, sutis até a inexistência, transtornadas pelos rigores da nuança, inexpressivas por haver exprimido tudo, de precisão assustadora, carregadas de fadiga e de pudor, discretas até na vulgaridade.” E vale a pena reproduzir o que ele diz em seguida (o texto em questão é uma carta enviada por Cioran, já instalado na França, a seu amigo e compatriota, Constantin Noica), pela beleza da descrição e pela pertinência do comentário a respeito da relação do autor em relação a este “idioma emprestado” e “inabordável” que é o francês:
Não há uma só cuja elegância extenuada não me dê vertigem: nelas não existe nenhum vestígio de terra, de sangue, de alma. Uma sintaxe de uma rigidez, de uma dignidade cadavérica as comprime e lhes designa um lugar de onde nem o próprio Deus poderia desalojá-las. Quanto café, quantos cigarros e dicionários para escrever uma frase mais ou menos correta nesta língua inabordável, demasiado nobre, demasiado distinta para o meu gosto! E só me dei conta disso depois, quando, infelizmente, já era tarde demais para afastar-me dela; de outra forma nunca teria abandonado a nossa, da qual às vezes sinto saudades do cheiro de frescor e de podridão, da mistura de sol e de bosta, da feiura nostálgica, da soberba descompostura. Não posso mais voltar para ela; a língua que tive que adotar me prende e me subjuga por causa dos próprios incômodos que me custou. (CIORAN, “Carta a um amigo distante”, in História e utopia)
Cioran aproxima a moderna figura do escritor, “artista do verbo” enredado na “aventura do estilo”, à figura do antigo sofista: ambos promoveriam a linguagem ao estatuto de realidade última, aferrando-se, cada qual à sua maneira, às palavras – as quais manejam com maestria – em detrimento do ser mesmo, daquilo que é, da coisa em si. Esta, por sua vez, dependeria “dos signos que a exprimem, e dos quais cumpre ser mestre.” Concebido arquetipicamente, o poeta seria alguém que mantém com as palavras – matéria-prima de sua póiesis – uma relação pautada pela ingenuidade, pela inocência, pela ilusão, por uma salutar irreflexão que é benéfica à sua fertilidade – conforme Cioran propõe em outro ensaio também de La tentation d’exister, intitulado “Demiurgia verbal”. Não existe poeta cético. Mas se, por uma curiosidade malsã do espírito, ele se põe a refletir sobre as palavras, a analisá-las, a perscrutá-las, a destrinchá-las, questionando sua relação com as realidades que exprimem, descobre-se, então, clarividente e estéril, encurralado entre duas irrealidades: a das palavras e a das coisas. Realizará, na melhor das hipóteses, uma prosa poética meio lírica, meio árida, a meio caminho entre o ideal artístico do belo e a exigência filosófica da verdade, dividido entre duas impossibilidades, contemplando e registrando, vazio, como um espectador de si mesmo, o desfile de suas sensações. Seria a condição do idealmente homem lúcido, conforme Cioran o concebe, o “fracassado” livre da superstição do verbo, condenado a uma esterilidade que só é equivalente à sua solidão, à sua condição separada – das coisas, desses fantasmas verbais que são as palavras, de si mesmo: “A lucidez é o único vício que nos torna livres – livres em um deserto.” (De l’inconvenient d’être né). Ou ainda, para citar um de seus primeiros livros romenos: “O fracasso é um paroxismo da lucidez. O mundo se torna transparente para o olho implacável daquele que, estéril e clarividente, já não se apega a nada. Mesmo inculto, o fracassado sabe de tudo, vê através das coisas, desmascara e anula toda a criação. O fracassado é um La Rochefoucauld sem gênio.” (Lacrimi și Sfinți)
Por fim, o ensaio apresenta, pelo viés de uma reflexão estética, o fisiologismo de base que caracteriza o pensamento de Cioran. Aquém das regras, convenções, costumes, é o imponderável da fisiologia que determinaria, em última instância, a direção que tomam o pensamento e a forma de expressão de cada indivíduo. A vantagem graças à qual o homem moderno, esclarecido, é mais livre do que seus antepassados para inovar, inventar, subverter todas as regras e todos os cânones, não poderia deixar de ser também, paradoxalmente, uma desvantagem, a saber, a de não contar nem mais – uma vez a Verdade tendo caído por terra – com o princípio norteador do estilo, pensado em sentido classicista, a perfeição estilística enquanto absoluto. Estilo e fisiologia, fisiologia e lucidez: estes dois binômios estruturam a meditação cioraniana acerca dos limites e condições, dos desafios e obstáculos da escrita enquanto artesanato do verbo, demiurgia verbal. Uma época demasiado madura, demasiado lúcida como a nossa, estaria fadada à descoberta de que, para além de toda moda, de toda convenção, “a maneira de um escritor é fisiologicamente condicionada”. E a sua maneira própria, balcânica – explosiva e refreada, transbordante e seca, obscura e jovial, turbulenta e delicada –, ele a cultivou com tamanho capricho e com tamanha seriedade que terminou por encontrar na escritura de si um destino inescapável e ao mesmo tempo heroico. “O importante é ter destino, ser um ‘caso’.” (O livro das ilusões) A aventura intelectual de Cioran é uma busca pela Beleza sempre inalcançável, sendo sua obra um conjunto de variações sobre a luta do escritor, fadada ao fracasso, para realizar o ideal da perfeição absoluta: sua razão de ser, sua salvação.
Emil (ou E. M.[1]) Cioran nasceu em 8 de abril de 1911 no pequeno vilarejo transilvano de Rǎșinari, na atual Romênia, à época sob domínio do império Austro-Húngaro. Formado em filosofia em Bucareste, em seguida viraria as costas à filosofia acadêmica, dedicando-se a uma escritura subjetiva e poética, confessional e ensaística, a meio caminho entre a reflexão filosófica e a criação literária. Pensador paradoxal e obscuro, perturbador e encantador, absolutamente inclassificável, Cioran é autor de livros como Nos cumes do desespero (1934), O livro das ilusões (1935), estes dois em romeno, Breviário de decomposição (1949), Silogismos da amargura (1952), La tentation d’exister (1956), História e utopia (1960), La chute dans le temps (1964), De l’inconvenient d’être né (1973), Écartèlement (1979), entre outros. Cioran faleceu em 20 de junho de 1995, em Paris, vítima de Alzheimer.
Rodrigo Inácio Ribeiro Sá Menezes, agosto de 2014
O estilo como aventura
E. M. CIORAN
Exercitados em uma arte puramente verbal, os sofistas foram os primeiros que se puseram a refletir sobre as palavras, sobre seu valor e sua propriedade, sobre a função que lhes cabia na condução do raciocínio: estava dado o passo capital em direção à descoberta do estilo, concebido como objetivo em si, como fim intrínseco. Só restava transpor essa busca verbal para tornar a harmonia da frase seu objetivo, substituir o jogo da abstração pelo jogo da expressão. O artista que reflete sobre seus meios é, então, um devedor do sofista, organicamente aparentado a ele. Um e outro perseguem, em direções distintas, um mesmo gênero de atividade. Tendo deixado de ser natureza, vivem em função da palavra. Nada de original neles: nenhum vínculo que os ligue às fontes da experiência; nenhuma ingenuidade, nenhum “sentimento”. Se o sofista pensa, domina de tal maneira seu pensamento que faz com ele o que quer; como não é arrastado por ele, dirige-o segundo seus caprichos ou seus cálculos; a respeito de seu próprio espírito, comporta-se como um estratego; não medita, concebe, segundo um plano tão abstrato quanto artificial, operações intelectuais, abre brechas nos conceitos, todo orgulhoso de revelar sua fraqueza ou de lhes conferir arbitrariamente uma solidez ou um sentido. A “realidade” não o preocupa nem um pouco: sabe que ela depende dos signos que a exprimem e dos quais cumpre ser mestre.
Também o artista vai da palavra ao vivido[2]: a expressão constitui a única experiência original de que ele é capaz. A simetria, o agenciamento, a perfeição das operações formais, representam seu habitat natural: aí reside, aí respira. E como visa a esgotar a capacidade das palavras, tende, mais que à expressão, à expressividade. No universo fechado em que vive, só escapa à esterilidade pelo renovamento contínuo que supõe um jogo no qual a nuança adquire dimensões de ídolo e onde a química verbal alcança dosagens inconcebíveis à arte ingênua. Uma atividade tão deliberada se aproxima, em compensação, caso se situe nas antípodas da experiência, das extremidades do intelecto. Ela faz do artista que a isso se dedica um sofista da literatura.
Chega um momento na vida do espírito em que a escritura,[3] erigindo-se em princípio autônomo, torna-se destino. É então que o verbo, tanto nas especulações filosóficas quanto nas produções literárias, desvela tanto seu vigor quanto seu nada.
A maneira de um escritor é fisiologicamente condicionada; possui um ritmo próprio, premente e irredutível. Não se concebe um Saint-Simon[4] mudando, pelo efeito de uma metamorfose desejada, a estrutura de suas frases, tampouco refreando-se, praticando o laconismo. Tudo nele exigia que se derramasse em frases emaranhadas, frondosas, móveis. Os imperativos da sintaxe deviam persegui-lo como um sofrimento e uma obsessão. Seu fôlego, a cadência de sua respiração, seu ofegar lhe impunham esse movimento fluido e amplo que força a solidez e a barreira das palavras. Havia nele um lado órgão tão diferente dessas notas de flauta que caracterizam o francês. De onde esses períodos que, por temor do ponto, brotam uns dos outros, multiplicam os desvios, repugnam a concluir-se.
No extremo oposto, pensemos em La Bruyère,[5] em sua maneira de cortar a frase, de restringi-la, de interrompê-la, bem atento a delimitar suas fronteiras: o ponto-e-vírgula é sua obsessão; ele tem a pontuação na alma. Suas opiniões, seus sentimentos mesmos são colocados. Teme solicitá-los, irritá-los ou exasperá-los. Como tem o fôlego curto, os lineamentos de seu pensamento são nítidos; pecaria antes pela falta que pelo excesso. No que esposa o gênio de uma língua especializada nos suspiros do intelecto, e para a qual o que não é cerebral é suspeito ou nulo. Condenada à secura por sua perfeição mesma, imprópria a assimilar e traduzir a Ilíada e a Bíblia, Shakespeare e Dom Quixote, esvaziada de toda carga afetiva, e isenta, por assim dizer, de sua origem, ela é impermeável ao primordial e ao cósmico, a tudo o que precede ou ultrapassa o homem. Mas a Ilíada, a Bíblia, Shakespeare ou Dom Quixote participam de uma espécie de onisciência ingênua, que se situa ao mesmo tempo acima e abaixo do fenômeno humano. O sublime, o horrível, a blasfêmia ou o grito, o francês só os aborda para desnaturá-los pela retórica. Não se adapta, ademais, nem ao delírio nem ao humor bruto: Aquiles e Príamo, Davi, Lear ou Dom Quixote sufocam sob os rigores de uma língua que os faz parecerem simplórios, lamentáveis ou monstruosos. Por diferentes que sejam, eles vivem ainda – e este é seu traço comum – ao nível da alma, a qual, para exprimir-se, exige uma língua fiel aos reflexos, unida aos instintos, não desencarnada.
Após haver frequentado idiomas cuja plasticidade lhe dava a ilusão de um poder sem limites, o estrangeiro desembestado, se, enamorado de improvisação e de desordem, levado ao excesso ou ao equívoco por inaptidão à claridade, aborda o francês com timidez, não deixa de ver nele um instrumento de salvação, uma ascese e uma terapêutica. Ao praticá-lo, cura-se de seu passado, aprende a sacrificar todo um fundo de obscuridade ao qual estava preso, simplifica-se, torna-se outro, desiste de suas extravagâncias, supera suas antigas turbações, acomoda-se cada vez mais ao bom-senso, e da razão; de resto, pode-se perder a razão e se servir de um utensílio que exige seu exercício, seu abuso inclusive? Como ser louco – ou poeta – em uma língua tal? Todas suas palavras parecem estar a par da significação que traduzem: palavras lúcidas. Servir-se delas com fins poéticos equivale a uma aventura ou um martírio. “Belo como prosa” – boutade francesa dentre todas. O universo reduzido às articulações da frase, a prosa como única realidade, o vocábulo retirado em si mesmo emancipado do objeto e do mundo: sonoridade em si, cortada do exterior, trágica ipseidade acuada a seu próprio acabamento.[6]
Quando se considera o estilo de nosso tempo, não se pode deixar de perguntar sobre as razões de sua corrupção. O artista moderno é um solitário que escreve para ele mesmo ou para um público sobre o qual não tem nenhuma ideia precisa. Ligado a uma época, esforça-se para exprimir seus traços; mas esta época é forçosamente sem rosto. Ele ignora a quem se dirige, não se representa seu leitor. No século XVIII e no seguinte, o escritor tinha em vista um círculo restrito do qual conhecia as exigências, o grau de finesse e de acuidade. Limitado em suas possibilidades, não podia se furtar às regras, reais ainda que não formuladas, do gosto. A censura dos salões, mais severa que a dos críticos de hoje, permite a eclosão de gênios perfeitos e menores, submetido à elegância, à miniatura e ao finito.
O gosto se forma pela pressão que os ociosos exercem sobre as Letras, sobretudo nas épocas em que a sociedade é bastante refinada para dar o tom da literatura. Quando se imagina que em outros tempos uma metáfora mal empregada desacreditava um escritor, que tal acadêmico perdeu todo o crédito por uma impropriedade, ou que uma palavra espirituosa pronunciada diante de uma cortesã podia levar a apuros, inclusive a uma abadia (tal foi o caso de Talleyrand), mede-se a distância que se percorreu desde então. O terror do gosto cessou, e, com ele, a superstição do estilo. Lamentar-se por isso seria tão ridículo quanto ineficaz. Temos atrás de nós uma sólida tradição de vulgaridade; a arte deve acomodar-se, resignar-se a ela, ou isolar-se na expressão absolutamente subjetiva. Escrever para todo mundo ou para ninguém, cabe a cada um decidir, segundo sua natureza. Não importa o partido que tomássemos, estamos seguros de não mais encontrar em nosso caminho este espantalho que foi outrora a falta de gosto.
Vírus da prosa, o estilo poético a desarticula e a arruína: uma prosa poética é uma prosa doente. Ademais, sempre sai de moda: as metáforas que tocam uma geração parecem ridículas à seguinte. Se lemos um Saint-Évremond,[7] um Montesquieu, um Voltaire, um Stendhal, como se fossem nossos contemporâneos, é que não pecaram nem por lirismo nem por excesso de imagens. Como a prosa participa do processo verbal, o prosador deve vencer seus primeiros movimentos, defender-se da tentação de sinceridade: todas as faltas de gosto vêm do “coração”. O povo em nós leva a responsabilidade de nossos transbordamentos, de nossos excessos: o que é mais plebeu do que um sentimento?
Soma de imperceptíveis constrições, sentido da dosagem e da proporção, vigilância exercida sobre nossas faculdades, discrição, pudor a respeito das palavras, o gosto é próprio de autores que, nada afetados pela mania de serem “profundos”, sacrificam uma parte de sua força em favor de uma certa anemia. Não poderíamos, desnecessário dizer, encontrá-lo em nosso século. Foi-se para sempre o tempo em que se podia maravilhosamente superficial. A decadência do requinte[8] devia implicar a do estilo, que, pitoresco, complexo, despedaça sob o peso de sua própria riqueza. De quem é a culpa, se culpa houver? Talvez se devesse imputá-la ao romantismo; mas inclusive ele não passou de uma consequência de um declínio geral, um esforço de liberação à custa do requinte. Na verdade, o refinamento do século XVIII não pôde se perpetuar sem cair no chavão, no maneirismo ou na esclerose.
Uma nação que desce ladeira abaixo se diminui em todos os planos. “Toda degradação individual ou nacional”, observa Joseph de Maistre,[9] “é anunciada de imediato por uma degradação rigorosamente proporcional na linguagem.” Nossas deficiências desbotam em nossa escritura; no que concerne a uma nação, seu instinto, cada vez menos seguro, arrasta-a a uma incerteza equivalente em todos os domínios. A França, há mais de um século, abandona seu antigo ideal de perfeição. O mesmo se deu com Roma: o eclipse de sua potência foi contemporânea do enfraquecimento do latim, que, dócil, a serviço de doutrinas e de quimeras opostas a seu gênio, tornou-se um utensílio do qual se apoderaram os concílios. A língua de Tácito, deformada, trivializada, forçada a suportar divagações sobre a Trindade! As palavras têm o mesmo destino que os impérios.
À época dos salões, o francês adquirira uma secura e uma transparência que lhe permitiram tornar-se universal. Desde que começara a se complicar, a tomar liberdades, sua solidez sofreu por isso. Ele se libera, enfim, em detrimento de sua universalidade e, como a França, evolui em direção à antípoda do seu passado, de seu gênio. Dupla desagregação inevitável. Nos tempos de Voltaire, cada um tentava escrever como todo mundo; mas todo mundo escrevia perfeitamente. Hoje, o escritor quer ter seu estilo próprio, individualizar-se pela expressão; só o consegue desfazendo a língua, violentando suas regras, sabotando suas estruturas, sua magnífica monotonia. Seria absurdo querer subtrair-se a este processo; colabora-se com ele apesar de si, e deve ser assim, sob pena de morte literária. A partir do momento em que o francês declina, declaremo-nos solidários de seu destino, aproveitemos as profundezas que ele exibe, como também de seu encarniçamento em vencer o pudor de seus limites. Nada mais vão do que recriminar seu belo outono, seus últimos raios. Tratemos, antes, de nos regozijar por viver em uma época em que as palavras, empregadas em qualquer sentido, se emancipam de toda constrição, e onde a significação não mais constitui uma exigência nem uma obsessão. Nenhuma dúvida: nós assistimos à esplendida desagregação de uma língua. Seu futuro? Talvez conhecerá alguns sobressaltos de delicadeza, nos quais, o que é mais provável, terminará por servir a concílios modernos, piores que aqueles da Antiguidade. Uma agonia rápida bem que poderia ser o que lhe cabe. Que ela caminhe ou não a um estado de vestígio, o que acontece é que vemos mais de um dos seus vocábulos perder o que lhe restava de vitalidade. O gênio da prosa fugirá para outros idiomas?
País das palavras, a França se afirmou pelos escrúpulos que concebeu a seu respeito. Destes escrúpulos restam traços. Uma revista, que fez em 1950 o balanço da metade do século, citava o acontecimento maior de cada ano: fim do caso Dreyfus,[10] visita do Kaiser a Tânger, etc. Para 1911, ela nota simplesmente: “Faguet[11] admite o malgré que.”[12] Prestou-se alguma vez semelhante solicitude ao Verbo, a sua vida cotidiana, aos detalhes de sua existência? A França o amou até o vício, e a despeito das coisas. Cética a respeito de nossas possibilidades de conhecer, não o é, em contrapartida, sobre nossas possibilidades de formular nossas dúvidas, sendo que assimila nossas verdades ao modo de traduzir nossa desconfiança a seu respeito. Em toda civilização delicada se opera uma disjunção radical entre a realidade e o verbo.
Falar de decadência no absoluto não significa nada; ligada a uma literatura e a uma língua, ela só concerne aquele que se sente ligado a uma e outra. Deteriora-se o francês? Só se alarma com isso quem vê nele um instrumento único e insubstituível. Pouco lhe importa que no futuro se encontre outra mais manejável, menos exigente. Quando se ama uma língua, é uma desonra sobreviver a ela.
Há dois séculos, toda originalidade tem se manifestado por oposição ao classicismo. Não há nenhuma forma ou fórmula nova que não tenha reagido contra ele. Pulverizar o adquirido, tal me parece ser a tendência essencial do espírito moderno. Em qualquer setor da arte, todo estilo se afirma contra o estilo. É minando a ideia de razão, de ordem, de harmonia, que tomamos consciência de nós mesmos. O romantismo, mais uma vez, não passou de um impulso em direção a uma dissolução das mais fecundas. Não sendo mais viável o universo clássico, cabe a nós socorrê-lo, inserir nele uma sugestão de inacabamento. A “perfeição” não mais nos inquieta: o ritmo de nossa vida nos torna insensível a ela. Para produzir uma obra “perfeita”, é preciso saber esperar, viver no interior dessa obra até que ela suplante o universo. Longe de ser o produto de uma tensão, é o fruto da passividade, o resultado de energias acumuladas durante muito tempo. Mas nós consumimos, somos homens sem reservas; assim, incapazes de sermos estéreis, ingressados no automatismo da criação, maduros para toda e qualquer obra, por todos os semi-êxitos.
A razão não morre apenas em filosofia, mas também na arte. Demasiado perfeitos, os personagens de Racine[13] nos parecem pertencer a um mundo dificilmente concebível. Nenhum há, até Fedra, nenhum que parece insinuar: “Olhem meus belos sofrimentos! Eu vos desafio a experimentar semelhantes!” Nós não sofremos mais assim; tendo nossa lógica mudado de face, aprendemos a passar sem evidencias. Daí vem nossa paixão do vago, o impreciso de nossos ares e de nosso ceticismo: nossas dúvidas não mais se definem em relação a nossas certezas, mas em relação a outras dúvidas mais consistentes, que é preciso tornar um pouco mais flexíveis, um pouco mais frágeis, como se nossa proposta, despreocupada com o estabelecimento de uma verdade, fosse a de criar uma hierarquia das ficções, uma escala dos erros. A “verdade”: nós odiamos seus limites e tudo o que ela representa como freio aos nossos caprichos ou à nossa busca do novo. Ora, o clássico, ao perseguir seu trabalho de aprofundamento em uma única direção, desconfiava do novo, da originalidade em si mesma. Nós queremos espaço a todo custo, mesmo se o espírito sacrifique para isso suas leis, suas velhas exigências. Nas poucas evidências que devemos, apesar de tudo, possuir, não acreditamos muito: simples pontos de referência. Nossas teorias, como nossas atitudes, são nossos sarcasmos que lhes conferem vida. E este sarcasmo, na raiz de nossa vitalidade, explica porque avançamos dissociados de nossos passos. Todo classicismo encontra suas leis nele mesmo e se atém a elas: vive em um presente sem história; enquanto que nós vivemos em uma história que nos impede de ter um presente. Assim, não apenas nosso estilo como também nosso tempo está em pedaços. Não pudemos despedaçá-lo sem, paralelamente, despedaçar nosso pensamento: em briga perpétua consigo mesmas, prontas para abolirem-se umas às outras, nossas ideias se esfarelam como nosso tempo.
Se há uma relação entre o ritmo fisiológico e a maneira de um escritor, também há uma, com maior razão, entre seu universo temporal e seu estilo. O escritor clássico, cidadão de um tempo linear, delimitado, cujas fronteiras ele não ultrapassava, como teria ele praticado uma escritura cadenciada, percutida? Conservava as palavras, vivia nelas permanentemente. E essas palavras, para ele, refletiam o eterno presente, esse tempo da perfeição, que era seu. Mas o escritor moderno, não tendo mais lugar no tempo, devia amar um estilo convulsivo, epiléptico. Podemos lamentar que seja assim e avaliar com amargura os arrasos implicados no pisoteio dos antigos ídolos. Acontece que nos é sempre impossível aderir a uma escritura “ideal”. Nossa desconfiança da “frase” alcança toda uma parte da literatura : aquela que jogava com o “encanto”, que empregava os procedimentos da sedução. Os escritores que a ela recorrem nos desconcertam, como se quisessem perpetuar um mundo ultrapassado.
Toda idolatria do estilo parte da crença de que a realidade é ainda mais oca que sua figuração verbal, que o acento de uma ideia vale mais que a ideia, um pretexto bem conduzido que uma convicção, uma construção sábia que uma irrupção irrefletida. Ela exprime uma paixão de sofista, de um sofista das Letras. Por detrás de uma frase com proporção, satisfeita de seu equilíbrio ou orgulhosa de sua sonoridade, esconde-se, muito frequentemente, o mal-estar de um espírito incapaz de aceder pela sensação a um universo original. O que há de espantoso em que o estilo seja ao mesmo tempo uma máscara e uma confissão?
[1] A sigla E. M. Cioran, com a qual Cioran assinou a maioria de seus livros franceses, até abandoná-la e assinar apenas Cioran, é um recurso estilístico para distanciar-se de sua antiga identidade romena (Émile lhe soava como um nome de cabeleireiro) e ao mesmo tempo forjar-se uma nova persona literária à la française. Sem nenhuma relação com um suposto nome do meio, como Michel ou Mihai (são apenas as duas primeiras letras do seu nome), a sigla teria sido inspirada no nome do escritor britânico E. M. Forster, autor de Passagem para a Índia. [N do T.]
[2] Do francês, vécu: vivido, vivência, experiência vivida. Um conceito caro (do alemão, Erlebnis) às variedades da chamada filosofia da vida (do alemão, Lebensphilosophie), ou “vitalismo”, que preconiza, em detrimento de toda abstração teórica, a experiência vivida e concreta do sujeito cognoscente. (N. do T.)
[3] Por que “escritura” e não simplesmente “escrita”, sendo possíveis ambas as traduções a partir do vocábulo francês écriture? Aquém de uma alusão a textos sagrados e antigos, optamos pela primeira alternativa para ressaltar o caráter vivencial, existencial, essencial mesmo, de uma escrita que se pretende muito mais, e muito menos, que um expediente pragmático, funcional, utilitário, de transmissão de conteúdos positivos com vistas à informação, à instrução, à pedagogia, à ação social e política. A escrita como um exercício do espírito, manutenção da subjetividade, terapêutica criativa, tendo como fim nada além dela própria, é o que se entende aqui por escritura. Cumpre notar, a propósito, a distinção que faz Roland Barthes, em O grau zero da escrita (Le degrée zero de l’écriture), entre o “escritor” (écrivain) e o “escrevente” (écrivant). Este corresponderia ao escritor-educador, ao intelectual engajado, que faz da escrita um meio para um fim outro, e mais elevado, que não a própria criação escrita que seria, ao mesmo tempo, uma criação de si. A escritura é própria do privat Denker (“pensador privado”), definição que Cioran reivindica para si numa entrevista, em oposição ao intelectual enquanto figura pública e professoral, socialmente engajado. A fórmula alemã (idioma que Cioran dominava) parece ser um trocadilho com Privatdozent, título universitário próprio das universidades alemãs. “A escrita como destino”, conforme lemos neste ensaio, “erigida em princípio autônomo”: eis a escritura (N. do T.)
[4] Claude-Henri de Rouvroy, conde de Saint-Simon (1760-1825). Economista e filósofo francês, fundador do movimento designado como saint-simonismo, doutrina sócio-econômica e política cuja influência seria determinante na França do século XIX. Modernizante, progressista e de viés utópico, pode ser considerado o pensamento fundador da sociedade industrial francesa. (N. do T.)
[5] Jean de la Bruyère (1645-1696), representante da tradição moralista francesa em filosofia. O filósofo “moralista”, neste contexto, não significa um pensador normativo, pregador dogmático, alguém que estabelece princípios de conduta e prescrições ético-morais, mas alguém que se dedica a analisar e criticar as ações humanas, o comportamento do indivíduo em sociedade, denunciando e desmascarando seus vícios, defeitos, contradições, hipocrisias. (N. do T.)
[6] Do francês, achèvement (do verbo achever, “acabar”, “concluir”, “terminar”), significando a conclusão, a completude, o estado de perfeição de uma coisa – no caso, a frase, considerada na economia da prosa enquanto forma discursiva. (N. do T.)
[7] Charles le Marquetel de Saint-Denis (1616-1703), senhor de Saint-Évremond, pensador moralista e espírito hedonista e libertino. (N. do T.)
[8] No original, exquis. (N. do T.)
[9] Joseph de Maistre (1753-1821), filósofo conservador francês de fé católica. Era também escritor, advogado e diplomata, contra-revolucionário e defensor da monarquia. Cioran escreveu um texto sobre ele, “Ensaio sobre o pensamento reacionário” (cf. CIORAN, Exercícios de admiração). (N. do T.)
[10] O affaire Dreyfus, como ficou conhecido na França, foi um escândalo político ocorrido em 1894 e que dividiu a opinião pública francesa durante anos. Alfred Dreyfuss era um soldado francês de origem judaica que teria sido acusado injustamente e sofrido um processo fraudulento com ares de xenofobia e antissemitismo. À época, o escritor Émile Zola foi a publico pronunciando-se em defesa de Dreyfuss. [N do T.]
[11] Émile Faguet (1847-1916), escritor e crítico literário francês. (N. do T.)
[12] Há, na França, uma antiga e longa controvérsia, a envolver autores normativos, puristas e não puristas, acerca da validez da fórmula malgré que (algo como o “malgrado” português, atualmente em desuso). Malgré que era bastante usual no francês do século XVIII a que Cioran nos remete. (N. do T.)
[13] Jean Racine (1639-1699), dramaturgo francês. Considerado um dos maiores dramaturgos clássicos da França, Racine estudou na escola de Port-Royal, ordem católica associada à polêmica teológica conhecida como jansenismo e do qual o filósofo Blaise Pascal (1623-1662), tão admirado por Cioran, foi um dos maiores representantes. Roland Barthes considera Racine, por seu estilo sutil e lúcido, o maior escritor francês de todos os tempos (cf. BARTHES, Sobre Racine). (N. do T.)