Pereira, Colômbia, outubro/novembro de 2022
Entre 31 de outubro e 5 de novembro de 2022, aconteceu, na cidade colombiana de Pereira, a 6ª edição do Encuentro Internacional Emil Cioran, um dos mais importantes eventos mundiais dedicados aos estudos sobre o homônimo pensador romeno radicado na França. O congresso, organizado pela filósofa M. Liliana Herrera e vinculado ao departamento de Filosofia da Universidade Tecnológica de Pereira (UTP), onde Herrera leciona filosofia, contou com a presença de acadêmicos nacionais e internacionais que se dedicam a estudar e a divulgar a obra de Cioran.
Foram no total 4 dias de conferências sobre os mais variados temas que compõem o pensamento caleidoscópico de Cioran, de um intenso e envolvente debate em torno de sua obra e vida. Comentarei aqui apenas algumas das conferências ocorridas nos dois primeiros dias.
Coube à Profa. M. Liliana Herrera as honras de dar boas-vindas aos participantes, abrindo oficialmente o congresso. A abertura também contou com a performance da pianista romena Viktoria Gumennaia, residente na Colômbia, que nos agraciou com uma amostra daquela que seria a “paisagem musical” da Romênia. Gumennaia tocou ao piano alguns temas tradicionais da cultura musical romena, estimulando nossos sentidos para a essência do espírito romeno através da forma de arte que Cioran mais amava.
Abrindo os trabalhos no primeiro dia, Joan Manuel Marín Torres (autor de Cioran o el laberinto de la fatalidad) falou sobre a paixão de Cioran pela Espanha em conferência intitulada “Cioran: ensoñaciones de España”. Marín problematizou e esclareceu a imagem cioraniana da Espanha, os motivos e as circunstâncias de seu interesse pelo país de Miguel de Cervantes. Mencionou o fato de que, antes de ir à Alemanha, Cioran contemplava a Espanha como destino de estudo, onde pretendia seguir os cursos de José Ortega y Gasset. O romeno teria visitado a Espanha 8 vezes no total, incluindo sua estadia na praia de Talamanca (Ibiza) da qual resultaria o pouco conhecido Cahiers de Talamanca. Mencionou também o primeiro encontro que Cioran teve, ainda jovem, com um espanhol (supostamente um discípulo do filósofo Miguel de Unamuno), que lhe teria dito: “me gusta la muerte y el sublime” (sic). A atração do romeno pelos místicos espanhóis não poderia passar em branco. “Cioran tinha três nacionalidades: a romena, a francesa e a romena; demasiado para um intelectual que se pretendia apátrida”, brincou.
Mihaela-Genţiana Stanișor, por sua vez, tratou da questão da “romenidade”, ou seja, daquela que seria a identidade romena em sua especificidade cultural, tendo como referências três grandes nomes da cultura de seu país: Mihai Eminescu, Lucian Blaga e Constantin Noica. Eminescu teria sido o primeiro a promover a ideia de uma “consciência da romenidade”, notadamente em seu poema intitulado “A oração de um dácio”. Mencionou o mito da Mioriţa, que seria tão significativo para os romenos quanto o é Dom Quixote para os espanhóis. Stanișor apresentou e explicou algumas entidades linguísticas mais distintivas da cultura romena, e que seriam, por assim dizer, distintivas do espírito romeno. Como as palavras dor (pronuncia-se “dór” correspondendo à nossa saudade, ou nostalgia) e bocete, que designa, por sua vez, uma espécie de elegia, um canto fúnebre bastante típico. Outra contribuição linguístico-cultural da filóloga romena oriunda de Sibiu, na Transilvânia, diz respeito à preposição întru (tão difícil de ser traduzida quanto compreendida em sua amplitude semântica), que seria bastante elucidativa a respeito do espaço vital romeno. Esta preposição seria, segundo Stanisor, especialmente significativa no sentido de ilustrar aquela que seria a “virtude polivalente” do espírito romeno, ou seja, a qualidade especial de certa dinâmica vital graças à qual os romenos seriam um povo tão espiritualmente rico. Întru denota, ao mesmo tempo, as noções de posição e de direção, isto é, ao mesmo tempo um “estar” (ou ser) e um “em direção a” (a caminho de…, no sentido de…), o que seria muito significativo, no plano abstrato da linguagem, no que diz respeito ao fundo trágico do espírito romeno – verticalidade e horizontalidade em permanente tensão. Um dos dizeres mais populares na Romênia, e que seria bastante revelador da alma do seu povo, é: “N-a fost sǎ fie” (Não era para ser; it wasn’t meant to be, em inglês).
Muito interessante foi a conferência de Roch Little, historiador e filósofo canadense estabelecido na Colômbia, onde leciona na Universidade Nacional de Bogotá. Ele se dispôs a analisar aqueles que seriam os “motivos cínicos” a animar a obra cioraniana. Sua conferência teve como ponto de partida o verbete “pessimismo” redigido por Michel Onfray em seu “dicionário hedonista” (Abrégé Hédoniste), no qual o filósofo francês inclui Cioran, junto a Schopenhauer e Leopardi, como um representante da respectiva categoria. Onfray parece veementemente crítico, em particular, a respeito do maior filósofo alemão pessimista: segundo ele, um poseur. Pessimistas como Schopenhauer seriam como que farsantes, impostores, pensadores incoerentes que vivem em permanente contradição com aquilo que pregam com suas palavras. A tese central de Little é que, muito embora inclua a Cioran no hall dos pessimistas chorões do qual Schopenhauer seria o mais ilustre exemplar, Onfray se mostra reticente em relação ao romeno, o que levaria a inferir que possivelmente reconhece em Cioran uma qualidade que dificilmente enxerga no autor de O mundo como vontade e como representação. Cioran se distinguiria de Schopenhauer justamente pelo fator poseur, impostor, farsante, que Onfray tanto critica em Schopenhauer, mas que no caso do pensador romeno seria uma atitude ironicamente assumida, em nenhuma contradição com aquilo que pensa e escreve. Sua sempiterna distância em relação à academia, sua marginalidade conquistada, o desejo de anonimato, a recusa de honrarias e prêmios, dos quais aceitou apenas o primeiro (por uma razão bastante compreensível de uma perspectiva cínica: necessitava do dinheiro para sobreviver em Paris) – eis a diferença fundamental que, segundo Little, seria decisiva para o silêncio de Onfray em relação a Cioran. Por fim, o canadense estabelecido na Colômbia identificou alguns motivos cínicos no pensamento de Cioran, como a ascese cínica (o ideal de uma vida simples sem trabalhar no circuito da civilização), o “realismo cru” da parrhesia, isto é, a sinceridade nua e crua, o dizer-a-verdade-doa-a-quem-doer, a bufonaria à la Diógenes, entre outros.
Francia Elena Goenaga, da Universidad de los Andes, abordou a “noção de paraíso nos Cahiers de Cioran”. Recorrendo a referências como Mary Shelley, René Char, Starobinski, entre outras, examinou o binômio criatura-criador no quadro de um uma reflexão sobre a nostalgia do paraíso (“a grande responsabilidade do criador é fazer com que a criatura seja feliz”), a imagem da “queda” como figura para dar sentido à condição humana tragicamente consciente de sua finitude e mortalidade (Char), a melancolia como sentimento fundamental produzido pela “queda no tempo”, intimamente ligado à nostalgia do paraíso perdido (Starobinski).
Hugo Peláez, de Sevilla, Villa de Cauca (Colômbia), brindou o público com uma conferência sobre o “Emil Cioran e o feitiço musical”. Citando a filósofa espanhola María Zambrano (“El lugar donde la esperanza se há refugiado de manera más confiada es la utopía”), que inspirou Cioran, a partir de uma conversa que tiveram no Café de Flore, em Paris, ao final da década de 50, Peláez desenvolveu a tese de que o pessimismo de Cioran assinala o fracasso da utopia, que, no entanto, o pensador romeno reencontrará na música, a “arte do absoluto”. “Só agimos sob a fascinação do impossível: isto significa que uma sociedade incapaz de gerar uma utopia e de consagrar-se a ela está ameaçada de esclerose e de ruína”, cita Peláez uma passagem do ensaio “Mecanismos da Utopia”, do livro História e Utopia (1960). Segundo o intelectual sevillano, só teve uma única certeza: a música, “arte do consolo por excelência.” Ademais, Peláez comentou a paixão especial de Cioran por Bach e as afinidades entre os pensamentos do romeno e da espanhola no que concerne ao tema da utopia, concebido em sentido latu muito além do sentido histórico. A civilização tem muito mais a ver com a música do que com a arquitetura e com as instituições políticas e sociais, diriam ambos.
Rodrigo Menezes, doutorando em Filosofia pela Pontifícia Universidade de São Paulo (PUC-SP) com uma tese sobre “niilismo, escritura e existência” em Cioran, foi o último conferencista do primeiro dia, com uma comunicação sobre o dogmatismo negativo e o niilismo em Cioran. O brasileiro problematizou o ceticismo do pensador romeno confrontando-o com o pessimismo niilista que subsiste mesmo em seus livros franceses, apesar do ceticismo reivindicado por Cioran a partir do momento em que adota o francês como idioma oficial. Nas antípodas da música, que seria como que o limite positivo da dúvida, o fenômeno do mal é outro tema sobre o qual o discurso cioraniano assume a forma de um logos dogmático negativo. Conforme escreve Sylvie Jaudeau, “Cioran não encontrou Deus, mas o mal. […] Tenta comunicar-nos o seu saber funesto lançando diante de nossos olhos essa parte de trevas que predomina e se perpetua até no vestígio material de sua escritura… […] A obra de Cioran, animada por uma vitalidade autônoma, é, em si mesma, uma figuração do mal”. Como pensa Cioran, só podemos escolher entre a ilusão e o desespero. O ceticismo é um exercício de tolerância mediante a disciplina da desfascinação (sendo que toda fascinação, para Cioran, possui um fundo egocêntrico), mas não é uma saída, uma resposta, uma solução, pois não pode oferecer nada nem de positivo de ne negativo. Seguimos então em um mundo em que é impossível duvidar do mal, e onde inclusive a certeza da dúvida é um mal.
O segundo dia de trabalhos foi inaugurado com outra conferência de Roch Little, desta vez sobre “a história no pensamento de Cioran”. Little se concentrou em dois livros de Cioran, História e Utopia (1960) e A Queda no Tempo (1964), aproximando o pessimismo histórico e a crítica de Cioran à modernidade da reflexão baudrillardiana sobre a hipermodernidade. Cioran ataca a essência mesma do pensamento, que postula uma finalidade, um sentido, um propósito para a história. O filósofo e historiador contrapôs a noção de queda em Cioran àquela de Kant e também ao pensamento de Rousseau (Sobre a Origem da Desigualdade entre os Homens).
Em seguida, mais uma conferência de Joan M. Marín. Sua segunda comunicação abordou o tema de “Epicuro e Cioran como terapeutas”. Um pensamento diurno, por um lado (Epicuro), e um pensamento noturno, por outro (Cioran); duas disposições de espírito e duas atitudes filosóficas opostas, mas cujos escritos têm em comum o sentido de certa terapêutica do espírito. Enquanto que a terapêutica de Epicuro buscaria curar os espíritos preconizando a moderação, a felicidade simples e arrazoada, aqui e agora, a terapêutica cioraniana preconizaria a contradição e o conflito, um estado de lucidez que purga as ilusões mas não oferece, em contrapartida, nenhum remédio, nenhuma cura positiva para o mal de existir.
Ainda no segundo dia, outra palestra de Mihaela-Genţiana Stanișor: “A escritura como posta em cena do pensamento desassossegado”. Este que foi um dos mais intensos e ricos dias de trabalhos do encontro internacional ocorrido em Pereira foi coroado com as últimas conferências do professor Alfredo Abad Torres e da professora María Liliana Herrera, ambos da Universidad Tecnológica de Pereira; respectivamente, uma reflexão a partir do diálogo entre Cioran (notadamente o capítulo “Odisseia do Rancor” de História e Utopia) e Dostoievski de Memórias do Subsolo, e uma reflexão sobre “a sulfúrica transfiguração” de Cioran, conferência que abordou de maneira ampla e aprofundada a questão do passado político de Cioran tendo como horizonte hermenêutico a filosofia da história de Oswald Spengler.