Estudante de filosofia na Universidade de Bucareste, o jovem Cioran apresenta esta dissertação (sem data determinada) sobre um problema filosófico que ecoará através de toda a sua obra posterior: a existência do mal no mundo tendo em vista a tese universalmente aceita do bem como elemento fundador e norteador do ser. Como conciliar a existência de um Deus todo-poderoso e bondoso com a existência do mal? Seria o teísmo, na ampla definição que lhe confere Cioran, uma tese convincente para explicar o mundo e o devir histórico? Não seria a possibilidade humana mesma de desesperar-se um argumento contra a perfeição da ordem do mundo, e do que quer que o tenha originado? Trata-se da velha controvérsia, teológica e metafísica, da teodicéia. São estas as questões norteadores que levarão o autor do Breviário de decomposição e História e utopia, a concluir ainda jovem: “A vida, que segue o ritmo de um dinamismo contínuo, é uma das formas de uma tragédia universal. Ela está condenada a destruir-se a si mesma.” (Rodrigo Inácio Ribeiro Sá Menezes)
CIORAN, Emil. “Le théisme comme solution au problème cosmologique” (Teismul ca soluţie a problemei cosmologice), trad. par Alain Paruit. In: TACOU, Laurence ; PIEDNOIR, Vincent (org.), Cahier L’Herne Cioran. Paris : L’Herne, 2009, p. 131-133.
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O teísmo é uma das soluções metafisicas do problema cosmológico. Ele parte da realidade transcendente de um ser superior, de natureza perfeita, que criou o mundo.
Ao longo do tempo, os homens não se contentaram com uma solução concreta, proveniente do quadro palpável do real, para explicar a origem e a realidade do mundo. A experiência cotidiana não lhes fornecia os dados para uma compreensão geral dos problemas; ela os encerrava em esquemas demasiado estreitos. Ademais, os dados empíricos não satisfaziam a sua necessidade de explicar a criação do mundo. Eles deviam ultrapassar o concreto para aceitar uma realidade transcendente. A imagem de um criador imperfeito, criando o mundo por pura espontaneidade, sem estar constrangido a ele por nada fora de si, se impunha a espíritos torturados pelo mistério do mundo.
Sócrates é o fundador do teísmo na filosofia grega. O mundo foi criado por um ser todo-poderoso. Ele só visou, por suas criações, o bem. O bem é o elemento capital que Sócrates considera como o fundamento do mundo. Também um discípulo de Sócrates, Platão, identificou a ideia suprema do bem com a divindade. No teísmo grego, o elemento dominante que caracteriza o ser supremo é, portanto, o bem. Isto me incita a pensar que, na concepção teísta, o ser supremo era postulado mais sob impulso de uma ideia m oral, de uma necessidade ética, do que de uma necessidade de explicação cosmológica.
É interessante ver qual é a forma tomada pela ideia de Deus no neoplatonismo, que é considerado como um panteísmo. Deus é aí uma realidade imanente ao mundo, Essa interpretação não é absolutamente verdadeira. Muito embora o mundo não seja uma emanação da divindade, para o neoplatonismo a divindade não se identifica com a multiplicidade caótica e incoerente dos fenômenos concretos. O neoplatonismo faz a síntese entre o teísmo e o panteísmo (síntese tentada pela filosofia moderna mediante o panenteísmo de Krause). Nós não integrados o neoplatonismo no teísmo; mas esta observação deveria ser formulada, pois essa corrente filosófica de natureza mística uma solução específica. O mundo emana de Deus e, ao mesmo tempo, Deus não é imanente à fenomenalidade cósmica.
É no judaísmo que o teísmo triunfa enquanto concepção precisa. Como já o sublinharam inúmeros pesquisadores, a metafísica religiosa do judaísmo implica a realidade de uma divindade transcendente. Deus é uma pessoa espiritual, infinita e todo-poderosa. Em sua imutável eternidade, ele dirige toda a complexidade dos fenômenos. Ele criou um mundo a partir do nada, por pura onipotência pessoal. O judaísmo não deve ser assimilado ao panteísmo cabalístico. Ao meu ver, a Cabala é um livro que não é específico do espírito no qual se desenvolve o judaísmo. Ela é uma síntese de crenças oriundas do Oriente. Foi escrita, de resto, numa época em que primavam as influências místicas de proveniência oriental.
O judaísmo é eminentemente personalista. (A opinião de Otto Weininger segundo a qual o panteísmo seria específico do judaísmo, é falsa e infundada. A tese de Sombart sobre o individualismo judaico é muito mais aceitável.)
O cristianismo não difere em nada do judaísmo, exceto pelos atributos conferidos a Deus. Ele não é o déspota implacável da concepção judaica; é, ao contrário, a bondade absoluta. Há entre ele e o homem uma comunhão estreita, e não a distância radical vista pelo judaísmo. Neste último, a revelação de Deus é histórica, ele é conhecido pela tradição da nação; no cristianismo, ele se revela cada um na medida em que se vive a fé com ardor. No judaísmo, Deus só é acessível ao homem, ao indivíduo, se ele se integrar à nação; no cristianismo, o inverso.
Passemos pelas crenças particulares que eclodiram no cristianismo. O seu teísmo acentua notadamente a natureza da relação entre o homem e Deus. Eis um problema que pertence à ética mais do que à cosmologia. A fatalidade da graça segundo Santo Agostinho não concerne à questão cosmológica, mas pode lançar luzes e soluções à questão moral da felicidade. A escolástica medieval concebia um Deus transcendente. Mas nós não caímos na confusão que consistiria em afirmar que todos os sistemas religiosos e filosóficos da escolástica sustentavam o teísmo: nós apenas afirmamos que o teísmo é uma característica da escolástica. São Tomás de Aquino tentou uma adaptação do aristotelismo ao cristianismo. Sua síntese repousa sobre a fusão, numa unidade independente desses elementos disparatados, entre a concepção aristotélica do primeiro motor e a concepção cristã do Deus criador. O tomismo é precisado na Summa Theologiae.
Passemos por Duns Scotus e a concepção franciscana de Deus, mais petista que metafísica. O Renascimento é eminentemente panteísta. Tirando Deus da sua solidão extrafenomênica, ele o faz baixar ao mundo e o identifica à toda a complexidade dos fenômenos.
O teísmo moderno é de origem cartesiana. Descartes não apresenta uma concepção teísta muito precisa. Muito embora não reduza Deus à pura impulsão do movimento inicial, ele não indica claramente se Deus intervém como uma força independente no mecanismo concreto do mundo. O teísmo moderno não é menos cartesiano em sua origem. O ateísmo de Malebranche e dos ocasionalistas reunidos ao seu redor tem sua fonte no cartesianismo. Descartes não podia conciliar numa explicação aceitável as relações do espírito e da matéria, duas substâncias distintas cujas características especificas não se podem combinar, cada uma delas representando uma unidade independente. É possível uma relação entre o espírito e a matéria, entre o pensamento, subtraído à espacialidade, e a extensão, realizada exclusivamente num quadro espacial? Para Descartes, um contato se realiza entre os dois na glândula pineal. Seus sucessores resolveram a questão afirmando que a divindade regulava suas relações. Segundo o ocasionalismo de Malebranche, Deus intervém com este propósito. Ele é transcendente, mas não radicalmente separado do mundo; sem sua intervenção, seria impossível regulá-las. O teísmo de Malebranche se caracteriza pela afirmação desse lado ativo de Deus; muito embora transcendente, ele participa na regulação de certos fenômenos.
O teísmo é finalista. O mundo foi criado para um determinado fim; sua razão superior de ser é a realização de condições de existências tão aceitáveis quanto possível. Essa finalidade aparece claramente se se afirma que o homem é a expressão suprema da vida em geral, a expressão mais sublime das formas de que ela se reveste em seu permanente devir. Todos os outros seres foram criados para facilitar a vida do homem, para lhe servir de instrumentos para a sua felicidade. Vejamos primeiramente se existe uma finalidade a natureza, e então se o teísmo tem uma justificação racional.
Na natureza, tudo é dinamismo. Integrada a essa natureza, da qual ela é uma simples modalidade, a vida é um combate incessante. Mas não um combate desprovido do trágico, não um combate provocado por um divertimento dos seres, entretendo um ativismo ininterrupto. A vida, que segue o ritmo de um dinamismo contínuo, é uma das formas de uma tragédia universal. Ela está condenada a destruir-se a si mesma. Quem poderia encontrar o signo de uma harmonia na destruição recíproca dos seres, na competição vital de que fala Charles Darwin? Para o teísmo, harmonias inefáveis ressoam no mundo, como num templo no qual os fiéis cantam hinos à glória da divindade. A vida pode ser comparada, ao contrário, a um abatedouro no qual os seres se destroem uns aos outros. Onde está a finalidade nessa imensa tragédia? A concepção teísta de Deus, bom e perfeito, não pode explicar a existência do mal no mundo. Nosso conhecimento concreto dessa tragédia não nos permite justificar ou afirmar a realidade desse Deus bom que o teísmo concebe.
Leibniz fala dos acidentes da criação. Pode Deus enganar-se se ele é perfeito? Não, evidentemente. Então, se Deus não pode eliminar o mal no mundo, é porque ele é imperfeito. O mal – cujo campo de manifestação no mundo é, em todo caso, muito mais vasto que o do bem – não é o único argumento contra a tese da divindade como ser perfeito. Há um outro, que enfraquece a onipotência de Deus e que é apresentado por um teísta, Paul Janet, em Causa finais. Por que Deus criou o mundo? Quer dizer que ele não podia viver em sua solidão inicial? Mas então, se ele sentiu a necessidade de algo fora dele, é porque não é um ser perfeito, pois um ser perfeito não conhece nem necessidade nem determinação. O problema é insolúvel, observa Janet, eis o fato mesmo da criação. Por que Deus criou o mundo? E Janet se resigna a afirmar que apenas Deus poderia esclarecer esse mistério. Triste resignação! Neste mundo em que a vida segue ao ritmo de uma tragédia universal, onde os homens se desesperam, torturados pela impossibilidade de aceder a uma satisfação concreta e imediata, não pode existir ser supremo, e menos ainda um ser supremo considerado bom.
Schopenhauer observou que a existência do mal no mundo é a principal objeção que se pode fazer à tese de um criador bom e perfeito. O mal é imanente ao mundo e não se pode conceber um ser absolutamente bom que seja incapaz de suprimi-lo. O teísmo não encontra, portanto, nenhuma justificação nos dados concretos da realidade.
Tradução do francês: Rodrigo Inácio Ribeiro Sá Menezes