Aforismos > Deus

Aforismos sobre Deus é um tema muito delicado. Muitas figuras e grandes figuras o interpretam de maneiras diferentes e se referem ao cristianismo de maneiras diferentes. Oferecemos ensaios gratuitos sobre este tópico, você pode encontrá-los em order-essays.com at https://order-essays.com

Se Jesus não tivesse morrido na cruz, o cristianismo não teria triunfado. Os mortais duvidam de tudo, menos da morte. A do Cristo constituiu, pois, para eles, a certeza suprema, a prova capital da validade dos principios cristãos. Jesus teria podido evitar perfeitamente a crucificação ou sucumbir às sedutoras tentações do diabo. Quem não pactua com o diabo não tem nenhuma razão de viver, já que o diabo expressa simbólicamente a vida melhor que o próprio Deus. Se lamento algo, é que o diabo me tenha tentado tão pouco. Mas Deus também não se preocupou particularmente de mim. Os cristãos continuam sem compreender que Deus está mais longe ainda dos homens que os homens estão dele. Imagino perfeitamente um Deus exasperado pela trivialidade de sua Criação, entediado tanto da terra como dos céus. E vejo-o precipitar-se em direção ao nada como Jesus abandonando sua cruz… (Nos cumes do desespero)

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Conseguirei um dia citar a Deus apenas? Nem os homens, nem mesmo os santos, têm um nome. Só Deus tem. Mas, que sabemos Dele, além de que é um desespero que começa onde acabam todos os outros? (Lacrimi şi sfinţi)

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Quando escutamos Bach, vemos germinar Deus. Sua obra é geradora de divindade. Depois de um oratório, de uma cantata ou de uma «Paixão», Ele tem que existir. Do contrário, toda a obra do Cantor seria uma ilusão desagarradora.
….e pensar que tantos teólogos e filósofos perderam tantos dias e tantas noites buscando provas da existência de Deus, esquecendo-se da única… (Lacrimi şi sfinţi)

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O religioso não é uma questão de conteúdo, mas de intensidade. Deus se concretiza em nossos momentos febris, de modo que o mundo em que vivemos se converte num excepcional objetivo da sensibilidade religiosa pelo fato de que só podemos refletir nos momentos neutros. Sem “febres”, não superamos o campo da percepção, ou seja, não vemos nada. Os olhos servem a Deus apenas quando não distinguem os objetos; o absoluto teme a individuação.
A intensificação de qualquer sensação é sinal de religiosidade. O grau máximo de repulsa nos revela o Mal (a via negativa em direção a Deus). O vício está mais próximo do absoluto do que um instinto autêntico, porque a participação no divino é possível na medida em que já não somos natureza.
Um homem lúcido controla suas “febres” a cada passo, como um espectador de seu próprio sofrimento, eternamente sobre suas pegadas, entregando-se de forma equívoca às fantasias de sua tristeza. Na lucidez, o conhecimento é uma homenagem à fisiologia.
Quanto mais sabemos sobre nós mesmos, mais cumprimos as exigências de uma higiene que consiste na realização da transparência orgânica. A claridade é tanta que vemos através de nós mesmos. Convertemo-nos assim em espectadores de nós mesmos. (Amurgul gândurilor)

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Se Deus colocasse a cabeça no meu ombro, como estaríamos bem assim, sozinhos e desconsolados! (Amurgul gândurilor)

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Deus: queda perpendicular sobre nosso pavor, salvação caindo como um raio em meio a nossas buscas que nenhuma esperança engana, anulação sem paliativos de nosso orgulho inconsolado e voluntariamente inconsolável, avanço do indivíduo por um desvio, paralisação da alma por falta de inquietudes… (“Desaparecer em Deus”, in: Breviário de Decomposição)

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Por que Deus é tão insípido, tão débil, tão mediocremente pitoresco? Por que carece de interesse, de vigor, de atualidade e parece-se tão pouco conosco? Existe uma imagem menos antropomórfica e mais gratuitamente longínqua? Como pudemos projetar sobre ele luzes tão pálidas e forças tão claudicantes? Para onde fluíram nossas energias, onde desaguaram nossos desejos? Quem absorveu então nosso excedente de insolência vital? […] Deus só podia ser fruto de nossa anemia: uma imagem vacilante e raquítica. É bom, suave, sublime, justo. Mas quem se reconhece nessa mistura com perfume de água de rosas exilada na transcendência? Um ser sem duplicidade não possui profundidade e mistério; não esconde nada. Só a impureza é sinal de realidade. (“O diabo tranquilizado”, in: Breviário de Decomposição)

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Quando se chega ao limite do monólogo, aos confins da solidão, inventa-se – na falta de outro interlocutor – Deus, pretexto supremo de diálogo. Enquanto o nomeias, tua demência está bem disfarçada e… tudo te é permitido. O verdadeiro crente mal se distingue do louco; mas sua loucura é legal, admitida; acabaria em um asilo se suas aberrações estivessem livres de toda fé. Mas Deus as cobre, as torna legítimas. O orgulho de um conquistador empalidece comparado à ostentação do devoto que dirige-se ao Criador. Como se pode ser tão atrevido? E como poderia ser a modéstia uma virtude dos templos, quando uma velha decrépita, que imagina o Infinito ao seu alcance, eleva-se pela oração a um nível de audácia ao qual nenhum tirano jamais aspirou? […]
(Senhor, dá-me a faculdade de jamais rezar, poupa-me a insanidade de toda adoração, afasta de mim essa tentação de amor que me entregaria para sempre a Ti. Que o vazio se estenda entre o meu coração e o céu! Não desejo ver meus desertos povoados com Tua presença, minhas noites tiranizadas por Tua luz, minhas Sibérias fundidas por Teu sol. Mais solitário do que Tu, quero minhas mãos puras, ao contrário das Tuas que sujaram-se para sempre ao modelar a terra e ao misturar-se nos assuntos do mundo. Só peço à Tua estúpida onipotência respeito para a minha solidão e meus tormentos. Não tenho nada a fazer com Tuas palavras. Conceda-me o milagre recolhido antes do primeiro instante, a paz que Tu não pudeste tolerar e que Te incitou a abrir uma brecha no nada para inaugurar esta feira dos tempos, e para condenar-me assim ao universo, à humilhação e à vergonha de existir.) (“A arrogância da oração”, in: Breviário de Decomposição)

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Solidão do ódio… Sensação de um deus voltado para a destruição, pisoteando as esferas, babando sobre o céu e sobre as constelações… de um deus frenético, sujo e malsão; um demiurgo ejaculando, através do espaço, paraísos e latrinas: cosmogonia de delirium tremens; apoteose convulsiva em que o fel coroa os elementos… As criaturas se lançam na direção de um arquétipo de fealdade e suspiram por um ideal de conformidade… Universo da careta, júbilo da toupeira, da hiena e do piolho… Nenhum horizonte mais, salvo para os monstros e para os vermes. Tudo se encaminha para o repulsivo e para o gangrenoso; este globo que supura enquanto que os viventes mostram suas feridas sob os raios do cancro luminoso. (“A negativa de procriar”, in: Breviário de Decomposição)

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Toda santidade é mais ou menos espanhola: se Deus fosse cíclope, a Espanha lhe serviria de olho. (“Espanha”, in: Breviário de Decomposição)

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A saúde: arma decisiva contra a religião. Invente o elixir universal: o céu desaparecerá para nunca mais voltar. É inútil seduzir o homem com outros ideais: sempre serão mais fracos que as doenças. Deus é nossa ferrugem, a deterioração insensível de nossa substância: quando penetra em nós, pensamos elevar-nos mas decaímos cada vez mais; chegados a nosso término, coroa nossa decadência e eis-nos “salvos” para sempre. Superstição sinistra, câncer coberto de auréolas que corrói a terra há milênios.
Odeio todos os deuses; não estou suficientemente saudável para desprezá-los. É a grande humilhação do Indiferente. (“Céu e higiene”, in: Breviário de Decomposição)

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Graças à imperfeição somos superiores a Deus; é o temor de perdê-la que nos faz fugir da santidade! O terror de um porvir em que não estaríamos mais desesperados…, onde, ao cabo de nossos desastres, apareceria outro, não desejado: o da salvação0; o terror de se tornar santos…
Quem adora suas imperfeições inquieta-se com uma transfiguração que seus sofrimentos poderiam provocar. Desaparecer em uma luz transcendente… Mais vale encaminhar-se para o absoluto das trevas, para as doçuras da imbecilidade… (“Ameaça de santidade”, in: Breviário de Decomposição)

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Estou de bom humor: Deus é bom; estou melancólico: é mau; indiferente: é neutro. Meus estados lhe conferem atributos correspondentes: quando gosto do saber, é onisciente, e quando adoro a força, é todo-poderoso. Parece-me que as coisas existem? Ele existe; parecem-me ilusórias? Ele se evapora. Mil argumentos o apoiam, mil o destroem; se meus entusiasmos o animam, meus maus humores o sufocam. Não saberíamos formar uma imagem mais mutável: o tememos como a um monstro e o esmagamos como a um inseto; se o idolatramos, é o Ser; se o repudiamos, é o Nada. A oração, ainda que pudesse suplantar a gravitação, não conseguiria nunca assegurar-lhe uma duração universal: sempre permaneceria à mercê de nossas horas. Seu destino quis que só permanecesse imutável aos olhos dos ingênuos ou dos ignorantes.  Um exame o revela: causa inútil, absoluto sem-sentido, modelo dos bobos, passatempo de solitários, ouropel ou fantasma conforme divirta nosso espírito ou frequente nossas febres.
Se sou generoso, enche-se de atributos; amargo, peso de tanta ausência. Vivi-o sob todas as suas formas: não resiste nem à curiosidade nem à investigação: seu mistério, seu infinito, se degrada; seu brilho se obscurece; seus prestígios diminuem. É uma roupa surrada que é preciso jogar fora; como continuar se vestindo com um deus em farrapos? Sua miséria, sua agonia, prolonga-se através dos séculos: mas não sobreviverá a nós, pois já envelhece: seus estertores precederão os nossos. Esgotados seus atributos, ninguém terá mais energia para forjar-lhe outros novos; e a criatura que os assumiu, e depois os rejeitou, irá reunir-se no nada com sua mais alta invenção: seu criador. (“Teologia”, in: Breviário de decomposição)

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A Anemia é o jardim onde floresce Deus. (Silogismos da Amargura)

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Muitas vezes me retirei para esse quarto de despejo que é o Céu, muitas vezes cedi à necessidade de sufocar em Deus! (Silogismos da Amargura)

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Sem Deus tudo é nada; e Deus? Nada supremo. (Silogismos da Amargura)

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Por necessidade de recolhimento, livrei-me de Deus, desembaracei-me do último chato. (Silogismos da Amargura)

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Por que desfazer-se de Deus para refugiar-se em si mesmo? Por que essa substituição de cadáveres? (Silogismos da Amargura)

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Pode-se falar honestamente de outra coisa além de Deus ou de si mesmo? (Silogismos da Amargura)

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O odor da criatura nos põe na pista de uma divindade fétida. (Silogismos da Amargura)

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Que lástima que para chegar a Deus tenha que se passar pela fé! (Silogismos da Amargura)

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Se acreditasse em Deus, minha fatuidade não teria limites; passearia nu pelas ruas… (Silogismos da Amargura)

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Fora da matéria, tudo é música: Deus mesmo não passa de uma alucinação sonora. (Silogismos da Amargura)

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Não é Deus, mas a Dor, quem desfruta das vantagens da ubiqüidade. (Silogismos da Amargura)

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Só conhecendo, em matéria de experiência religiosa, as inquietudes da erudição, os modernos avaliam o Absoluto, estudam suas variedades e reservam seus estremecimentos para os mitos — esses vertigens para consciências historiadoras. Havendo deixado de rezar, comentam a prece. Nenhuma exclamação mais, só teorias. A Religião boicota a fé. No passado, com amor ou ódio, os homens se aventuravam em Deus, o qual, de Nada inesgotável que era, agora é apenas — para desespero de místicos e ateus — um problema. (Silogismos da Amargura)

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Que auxílio pode oferecer a religião a um crente decepcionado por Deus e pelo Diabo? (Silogismos da Amargura)

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Sem Bach, a teologia seria desprovida de objeto, a Criação fictícia, o nada peremptório.
Se há alguém que deve tudo a Bach esse alguém é Deus. (Silogismos da Amargura)

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“Um só pensamento endereçado a Deus vale mais que o universo inteiro.” (Catherine Emmerich)
Ela tem razão, a pobre santa… (Silogismos da Amargura)

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Sem a hipótese de um deus febril, obcecado, sujeito a convulsões, embriagado de epilepsia, não poderíamos explicar este universo que em tudo traz as marcas de uma baba original. E adivinhamos a essência desse deus quando nós mesmos experimentamos um tremor semelhante ao que ele deve ter sentido nos momentos em que lutava com o caos. Pensamos nele como tudo o que em nós é contrário à forma ou ao bom senso, com nossas confusões e nosso delírio; nos aproximamos dele através de súplicas que nos deslocam, pois ele fica próximo de nós toda vez que algo, em nós, se rompe e que, à nossa maneira, também enfrentamos o caos. Teologia sumária? Contemplando esta criação sabotada, como não incriminar seu autor? Como, sobretudo, julgá-lo hábil ou simplesmente destro? Qualquer outro deus teria dado provas de maior competência ou equilíbrio do que ele: para onde quer que se o lhe, só existe erro e confusão. É impossível absolvê-lo, mas também é impossível não compreendê-lo. E nós o compreendemos por tudo o que em nós é fragmentário, inacabado, malfeito. Sua empresa carrega os estigmas do provisório, e, no entanto, não foi tempo o que lhe faltou para realizá-la bem. Para nossa desgraça, ele foi inexplicavelmente apressado. Por uma ingratidão legítima, e para que sinta nosso mau humor, nos esforçamos – peritos em anti-Criação – para deteriorar seu edifício, para tornar ainda mais miserável uma obra já comprometida desde seu início. Sem dúvida seria mais sensato e mais elegante não tocar nela, deixá-la tal e qual, não vingar-nos nela das incapacidades de seu Criador; mas como ele nos transmitiu seus defeitos, não temos por que termos considerações com Ele. Se, em última instância, O preferimos aos homens, isso não O coloca a salvo de nossos maus humores. Talvez só tenhamos concebido Deus para justificar e regenerar nossas revoltas, para dar-lhes um objeto digno, para impedir que se extenuem e se aviltem, realçando-as pelo abuso revigorante do sacrilégio, réplica às seduções e aos argumentos do desânimo. Jamais nos desembaraçamos de Deus. Tratá-Lo de igual para igual, como inimigo, é uma impertinência que fortifica, que estimula, e são dignos de lástima aqueles a quem Ele não irrita mais. Que sorte, em compensação, poder – sem cerimônia – responsabilizá-Lo por todas as nossas misérias, humilhá-Lo e injuriá-Lo, não perdoá-Lo em momento algum, nem sequer em nossas orações! (História e Utopia)

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Se Deus pôde dizer que ele era “aquele que é”, o homem, por oposição, poderia ser definido como “aquele que não é”. E é justamente essa ausência, esse déficit de existência, que, despertando sua altivez como reação, incita-o ao desafio e à ferocidade. (La chute dans le temps)

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O homem depende de ordens incompatíveis, contraditórias, e nossa espécie, naquilo que tem de única, se situa como que fora dos reinos. Ainda que exteriormente tenhamos tudo da besta e nada da divindade, a teologia dá melhor conta de nosso estado que a zoologia. Deus é uma anomalia; o animal, não; pois bem, assim como Deus, nós perdemos dignidade, existimos graças a nossas irredutibilidades. Quanto mais à margem das coisas estamos, melhor compreendemos quem se encontra à margem de tudo; talvez compreendamos bem apenas a ele… Seu caso nos interessa e nos fascina, e sua anomalia, que é suprema, nos parece a conclusão, a expressão ideal da nossa. Apesar disso, nossas relações com ele são turvas: sem poder amá-lo sem equívoco nem segundas intenções, questionamo-lo, importunamo-lo com nossas perguntas. O saber, erguido sobre a ruína da contemplação, nos afastou da união essencial, do olhar transcendente anulado pela estranheza e o problema. (La chute dans le temps)

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É difícil, é impossível crer que o deus bom, o “Pai”, tenha-se envolvido no escândalo da criação. Tudo faz pensar que não teve nela participação alguma, que essa é a obra de um deus sem escrúpulos, de um deus tarado. A bondade não cria: falta-lhe imaginação; mas é preciso possuí-la para fabricar um mundo, por mais avacalhado que seja. É, no limite, da mescla de bondade e maldade que pode surgir um ato ou uma obra. Ou um universo. Partindo do nosso, é em todo caso muito mais fácil remontar a um deus suspeitoso que a um deus honrável.
O deus bom, decididamente, não foi dotado para criar: possui tudo, menos a onipotência. Grande por suas deficiências (anemia e bondade andam juntas), é o protótipo da ineficácia: não pode ajudar ninguém… Só nos agarramos a ele quando nos despojamos de nossa dimensão histórica; enquanto nos reintegramos a ela, nos é estranho, nos é incompreensível: não tem nada do que nos fascina, não tem nada de monstro. E é então quanto nos voltamos ao criador, deus inferior e atarefado, instigador dos acontecimentos. Para compreender como pôde ter criado, é preciso imaginá-lo presa do mal, que é inovação, e do bem, que é inércia. Esta luta foi, sem dúvida, nefasta para o mal, pois deveu sofrer a contaminação do bem: o que explica por que a criação não pode ser inteiramente má. (Le Mauvais Demiurge)

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A exortação criminosa do Gênese: Crescei-vos e multiplicai-vos, não pode ter saido da boca do deus bom. Sedes escassos, deveria ter sugerido, se tivesse tido voz no capítulo. Tampoco poderia ter acrescentado as palavras funestas: E enchei a terra. Deveria-se, antes de tudo, apagá-las para lavar a Bíblia da vergonha de tê-las acolhido. (Le Mauvais Demiurge)

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Se este mundo emanasse de um deus honrável, matar-se seria uma audácia, uma provocação inominável. Mas como temos todos os motivos para pensar que se trata da obra de um infra-deus, não vemos porque alguém teria de preocupar-se. Com quem ter consideração? Grande beneficiário da desaparição da fé, o suicídio será cada vez mais fácil e, por isso mesmo, menos misterioso, porque terá degastado seu prestígio de anátema. Picante e meritório outrora, passa agora a fazer parte dos costumes, ganha terreno, e, ainda que deixe de ser insólito, seu futuro, por outro lado, parece seguro. No interior do universo religioso aparece como uma insanidade e uma traição, como a malfeitoria por excelência. Como se pode crer e aniquilar-se? Insistamos na hipótese do infra-deus, que tem a vantagem de permitir os gestos extremos, a vitória radical sobre um mundo tarado.
Podemos imaginar esse criador consciente, por fim, de seu desvario, declarando-se culpado: desiste, se retira e, por um último prurido de elegância, se faz justiça. Desaparece assim com a sua obra, sem que o homem intervenha em nada. Tal seria uma versão melhorada do Juízo Final. (Le Mauvais Demiurge)

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É preciso pensar em Deus e não na religião, no êxtase e não na mística. (Le Mauvais Demiurge)

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Aspirar, no mais profundo de si mesmo, a ser tão desapossado, a ser tão lamentável quanto Deus. (De l’inconvenient d’être né)

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Se é verdade que Deus detesta tomar partido, eu não me sentiria nada incomodado em sua presença, tal seria meu prazer de imitá-lo em tudo, de ser, como Ele, um sem‑opinião. (De l’inconvenient d’être né)

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Apenas Deus tem o privilégio de abandonar-nos. Os homens podem apenas deixar-nos. (De l’inconvenient d’être né)

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Só permanece o que tenha sido concebido na solidão, cara a cara com Deus, seja-se crente ou não. (De l’inconvenient d’être né)

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Nada fácil falar de Deus quando não se é nem crente nem ateu; este é sem dúvida o drama de todos nós, teólogos incluídos, de não poder ser nem uma coisa nem outra. (De l’inconvenient d’être né)

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“Você errou em contar comigo”. Quem pode falar assim? Deus e o Fracassado. (De l’inconvenient d’être né)

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É óbvio que Deus era uma solução e que não encontraremos outra igualmente satisfatória. (De l’inconvenient d’être né)

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Deus é o que sobrevive à evidência de que nada merece ser pensado. (De l’inconvenient d’être né)

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Tzimtsum. Esta palavra ridícula designa um dos conceitos maiores da Cabala. Para que o mundo existisse, Deus, que era tudo e estava em todas as partes, consentiu em encolher-se, em deixar um espaço vazio, que não estivesse habitado por ele: foi nesse “buraco” onde criou o mundo.
Assim, ocupamos esse terreno baldio que nos concedeu por misericórdia ou por capricho. Para que existíssemos, contraiu-se, limitou sua soberania. Somos o produto de sua diminuição voluntária, de sua desaparição, de sua ausência parcial. Em sua loucura, amputou-se por nós. Como não teve o bom senso e o bom gosto de permanecer inteiro! (De l’inconvenient d’être né)

§

Segundo a Cabala, Deus criou as almas desde o começo e todas se encontravam perante ele na forma que deveriam assumir quando mais tarde encarnassem. Cada uma, quando chega sua hora, recebe a ordem de unir-se com o corpo que lhe está destinado, e cada uma também implora inutilmente ao seu Criador que lhes dispense dessa escravidão e dessa mancha.
Quanto mais penso no que aconteceu quando chegou a vez da minha, mais me digo que, se houve uma que resmungou com maior intensidade, foi a minha. (De l’inconvenient d’être né)

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Deus: uma doença da qual nos acreditamos curados porque ninguém mais morre por causa dela. (De l’inconvenient d’être né)

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Não queria viver em um mundo esvaziado de todo sentimento religioso. E não me refiro à fé, mas a essa vibração interior que, independente de qualquer crença, nos projeta em Deus e às vezes inclusive mais acima. (Écartèlement)

§

Se o relato da Queda parece tão impressionante, é porque seu autor não nos descreve entidades nem símbolos: um Deus passeando de verdade por um jardim, um Deus rural, como tão justamente o qualificou um exegeta. (Écartèlement)

§

Segundo o autor gnóstico do Apocalipse de João,chamar de infinito o Altíssimo é pouco, pois Ele é “muito mais que isso”.
Gostaria de conhecer o nome do autor que viu com tanta perspicácia em que consiste a extravagante singularidade de Deus. (Écartèlement)

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Lástima que Deus não tenha guardado para si o monopólio do “ego”, que nos tenha autorizado a falar em nosso próprio nome. Teria sido tão mais simples nos dispensar a praga do “eu”… (Écartèlement)

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Segundo a Cabala,Deus permite que seu esplendor diminua para que os anjos e os homens possam suportá-lo. O que equivale a dizer que a Criação coincide com um debilitamento da claridade divina, com um esforço em direção à sombra com que consentiu o Criador. A hipótese do obscurecimento voluntário de Deus tem o mérito de abrir-nos a nossas próprias trevas, responsáveis por nossa irreceptividade a certa luz. (Aveux et Anathèmes)

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« Deus não criou nada que odeie mais que este mundo, e tanto o odeia que desde o dia que o criou, não voltou a olhá-lo. »
Não sei quem foi o místico mulçumano que escreveu isto, ignorarei para sempre o nome desse amigo. (Aveux et Anathèmes)

§

Crer em Deus nos dispensa de crer em qualquer outra coisa ‑ o que supõe uma vantagem inestimável. Sempre invejei quem cria nele, ainda que crer-se Deus me pareça mais fácil que crer em Deus. (Aveux et Anathèmes)

§

Retirar-se indefinidamente em si mesmo, como Deus depois do sexto dia. Imitemo-lo ao menos nisso. (Aveux et Anathèmes)

§

A música só existe enquanto dura a audição, como Deus enquanto dura o êxtase.
A arte suprema e o ser supremo possuem em comum o fato de dependerem totalmente de nós. (Aveux et Anathèmes)

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Deus é o ser condicionado por excelência, o escravo dos escravos, prisioneiro de seus atributos, daquilo que ele é. O homem, pelo contrário, dispõe de certa independência, na medida en que não é, em que, possuindo apenas uma existência emprestada, se agita em sua pseudorrealidade. (Aveux et Anathèmes)

§

Sempre há alguém acima de nós: mais além de Deus se eleva o Nada. (Aveux et Anathèmes)

§

Enquanto permanecer de pé um deus sequer, a tarefa do homem não terá terminado. (Aveux et Anathèmes)

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Tradução do francês:
Rodrigo Menezes

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