Há experiências às quais não podemos sobreviver. […] Se continuamos vivos, é graças à escrita, que, por meio da objetivação, ameniza essa tensão infinita. Criar significa salvar-se provisoriamente das garras da morte (Nos Cumes do Desespero)
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Escrever seria um ato insípido e supérfluo se pudéssemos chorar à vontade, e imitar as crianças e as mulheres tomadas pelo furor… Na matéria de que somos moldados, em sua mais profunda impureza, encontra-se um princípio de amargura, que só as lágrimas suavizam. Se cada vez que os desgostos nos assaltam, tivéssemos a possibilidade de nos livrar deles pelo pranto, as doenças vagas e a poesia desapareceriam. (Breviário de decomposição)
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Escrever livros não deixa de ter alguma relação com o pecado original. Pois, que é um livro, senão uma perda de inocência, um ato de agressão, uma repetição de nossa queda? Publicar suas taras para divertir ou exasperar! Uma barbaridade para com nossa intimidade, uma profanação, uma mancha. E uma tentação. Falo com conhecimento de causa. Pelo menos, tenho a desculpa de odiar meus atos, de executá-los sem crer neles. Você é mais honrado: escreverá livros e acreditará neles, acreditará na realidade das palavras, nessas ficções pueris e indecentes. Das profundidades do asco, me aparece como um castigo tudo o que é literatura; tentarei esquecer minha vida por medo de me referir a ela; ou melhor, sem conseguir alcançar o absoluto do desengano, me condenarei a uma frivolidade morosa. Um mínimo de instinto, no entanto, me obriga a agarrar-me às palavras. O silêncio é insuportável: que força faz falta para estabelecer-se na concisão do Indizível! É mais fácil renunciar ao pão que às palavras. Infelizmente, a palavra resvala para o palavrório, em direção à literatura. Inclusive o pensamento tende a isso, sempre pronto a se inflar; detê-lo pela agudeza, reduzi-lo a aforismo ou a pilhéria, é opor-se a sua expansão, a seu movimento natural, a seu ímpeto para a dissolução, à inflação. […] Toda palavra é uma palavra demais. Trata-se, no entanto, de escrever: pois escrevamos… enganemo-nos uns aos outros. (La tentation d’éxister)
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Já que a expressão não está mais à altura de medir-se com os acontecimentos, fabricar livros e sentir-se orgulhoso deles constitui um espetáculo dos mais lamentáveis: que necessidade leva um escritor que escreveu cinquenta volumes a escrever outro mais? Por que essa proliferação, esse medo de ser esquecido, essa afetação de má fé? Só merecem indulgência o literato necessitado, o escravo, o forçado da pena. Em todo caso, já não há mais nada a se construir, nem em literatura nem em filosofia. (La tentation d’éxister)
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Na vida do espírito chega um momento em que a escritura, erigindo-se em princípio autônomo, se converte em destino. É então que o Verbo, tanto nas especulações filosóficas como nas produções literárias, revela seu vigor e seu nada. (La tentation d’éxister)
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Quanto mais se gagueja, mais se esforça para escrever melhor. Assim nos vingamos de não ter podido ser oradores. O gago é um estilista nato. (Le mauvais demiurge)
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Só deveríamos escrever livros para dizer coisas que não nos atreveríamos a confiar a ninguém. (De l’inconvenient d’être né)
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Quanto mais nos prejudica o tempo, mais queremos fugir dele. Escrever uma página sem defeito, uma frase apenas, nos eleva por cima do devir e de suas corrupções. Transcendemos a morte pela busca do indestrutível através do verbo, através do símbolo mesmo da caducidade. (De l’inconvenient d’être né)
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O horror perante o acessório me paralisa. Ora, o acessório é a essência da comunicação (logo, do pensamento), é a carne a o sangue da palavra e da escritura. Querer renunciar a ele é como fornicar com um esqueleto. (De l’inconvenient d’être né)
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Um livro deve cutucar as feridas, provocá-las inclusive. Um livro deve ser um perigo. (Écartèlement)
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Não se escreve porque se tem algo a dizer, mas porque se quer dizer algo. (Écartèlement)
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O escritor autêntico escreve sobre os seres, as cosas e os acontecimentos, não sobre o ato de escrever; ele se serve das palavras, mas não se demora nelas, nem faz delas o objeto de suas inquisições. Será tudo menos um anatomista do Verbo. A dissecção da linguagem é a mania de quem, não tendo nada a dizer, se confinam no dizer. (Écartèlement)
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O que se escreve dá uma imagem incompleta do que se é, pela simples razão de que as palavras surgem e tomam vida apenas quando se está no ponto mais alto ou mais baixo de si mesmo. (Écartèlement)
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Sem dúvida, é medíocre o autor que escreve para a posteridade. Não se deveria saber para quem se escreve. (Écartèlement)
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Por precaução terapêutica, vomitou em seus livros todo o impuro que havia nele, os resíduos de seu pensamento, as fezes de seu espírito. (Écartèlement)
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– Seu livro é um livro fracassado.
– É verdade, mas você se esquece de que eu o quis assim e que apenas desse modo poderia ficar perfeito. (Écartèlement)
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Pobre do escritor que não cultive sua megalomania, que a veja minguar sem reagir. Logo se dará conta de que não se fica normal impunemente. (Aveux et Anathèmes)
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É a humanidade tarada o que constitui a matéria da literatura. O escritor se felicita da perversidade de Adão, e prospera unicamente à medida que cada um de nós a assume e renova. (Aveux et Anathèmes)
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Só está inclinado a produzir quem se equivoca sobre si mesmo, quem ignora os motivos secretos de seus atos. O criador que chegou a ser transparente para si mesmo deixa de criar. O conhecimento de si indispõe o demônio. É aí que se tem de buscar a razão de Sócrates não ter escrito nada. (Aveux et Anathèmes)
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No meio de uma frase, com que facilidade nos consideramos o centro do mundo! Escrever e venerar não andam juntos: quer se queira ou não, falar de Deus é olhá-lo do alto. A escrita é a desforra da criatura e sua resposta a uma criação sabotada (Exercícios de Admiração).
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Combati todas as minhas paixões e tentei seguir sendo escritor. Mas isso é quase impossível, pois um escritor só o é na medida em que salvaguarda e cultiva suas paixões, que inclusive as excita e exagera. Escrevemos com nossas impurezas, nossos conflitos não resolvidos, nossos defeitos, nossos ressentimentos, nossos restos…. adâmicos. Somos escritores tão-somente porque não conseguimos vencer o homem antigo. Que digo? O escritor é o triunfo do homem antigo, das velhas taras da Humanidade; é o homem antes da Redenção. Para o escritor, o Redentor ainda não chegou efetivamente, ou então sua ação redentora não surtiu nenhum resultado. O escritor se felicita do erro de Adão e só prospera na medida em que cada um de nós a renova e a toma para si. A Humanidade tarada em sua essência é o que constitui a matéria de toda obra. Só se cria a partir da Queda. (Cahiers)