“A EXISTÊNCIA, para Cioran, oscila sempre nessa delicada tensão entre, por um lado, se assumir como uma tragédia incomensurável e, por outro lado, ser perspectivada como um leve aborrecimento, como um tédio que se tem de suportar… Mas trata-se sempre (como também em Pessoa) de um enquadramento muito específico: de uma teologia sem teologia, uma espécie de reflexão intersticial e nómada que surge quando o niilismo se cruza com um certo misticismo de contornos indefinidos. O que brota de uma tal reflexão é a tal nostalgia intangível de que fala, a fome de um absoluto incompulsável, que se poderia aproximar do sentido do mistério da relação do homem com aquilo que Rudolf Otto apelida de “numinoso”, desse mysterium tremendum que não pode deixar de assaltar quem se aproxima do transcendente.” (R.G.S.)
Ricardo Gil Soeiro é poeta e ensaísta. Doutorado em Estudos Literários pela Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa, onde é investigador do Centro de Estudos Comparatistas, desenvolve pesquisa sobre literatura comparada, teoria da literatura e estudos pós-humanistas. Organizou e traduziu o volume As Artes do Sentido, de George Steiner (Relógio D’Água, 2017), traduziu Confissões e Anátemas, de Emil Cioran, e co-editou o livro Paul Celan: Da Ética do Silêncio à Poética do Encontro (2014). Publicou os seguintes livros de ensaio: O Pensamento Tornado Dança (2009), Gramática da Esperança (2009), Poéticas da Incompletude (2017) e, mais recentemente, O Claro Enigma da Matéria: Uma Aproximação Pós-Humanista à Poesia de W. Szymborska (Abysmo, 2022, no prelo). Em 2012 veio a lume L’apprendista di enigmi, uma antologia poética traduzida para o italiano. Com Iminência do Encontro foi galardoado com o Prémio PEN Clube Português – Primeira Obra 2010. Com o livro A Sabedoria da Incerteza foi finalista do Prémio PEN de Ensaio 2022. Com o livro Palimpsesto foi finalista do Prémio Autores 2017-SPA, na categoria de Literatura – Melhor Livro de Poesia. Com o livro A rosa de Paracelso foi finalista do Grande Prémio de Literatura DST 2018. É autor do ainda inédito Volúpia do Desastre: Notas Soltas para Cioran, a ser publicado pela Editora Labirinto no início de 2022. Este Portal teve o privilégio de conversar com ele sobre Cioran e outros temas: Fernando Pessoa e Clarice Lispector, escritas e tessituras, o fragmento e outros exercícios, diálogos infinitos…
EMCioran/Br: Como você descobriu a obra de Cioran, e que valor lhe atribui? O que o motivou a escrever essas sugestivas Notas Soltas para Cioran?
R.G.S.: O primeiro contacto que tive com Cioran foi através da leitura de História e Utopia,[1] no meu primeiro ano de licenciatura. A obra, como é bom de ver, não constava do programa de nenhuma disciplina: comprei o livro numa pequena feira do livro que estava a decorrer na Faculdade de Letras de Lisboa e fiquei imediatamente fascinado com o tom e a intransigência do seu pensar e a qualidade da sua escrita, porque também é de literatura que temos de falar, quando falamos de Cioran… Fascinou-me o contorno niilista das suas obsessões (a morte, o tédio, a solidão, o tempo, o desespero), mas também a veemência do estilo em que tal pensamento radical se plasmava. Na altura eu estava imerso no Livro do Desassossego e em Húmus, de Raul Brandão, bem como na leitura do Nietzsche e de Heidegger. Esse livro foi, de facto, o rastilho para incendiar, de forma irrevogável, a minha paixão por Cioran. Como acontece com todas as genuínas obsessões, a partir desse momento, comecei a devorar tudo o que pudesse encontrar desse autor tão enigmático e paradoxal. Cedo li A Tentação de Existir (Lisboa: Relógio D’Água, 1988), na altura a única obra traduzida aqui em Portugal (para além do História e Utopia),[2] e encomendei alguns livros em francês. As primeiras obras de Cioran que li no original foram De l’inconvénient d’être né e Précis de décomposition. Li também uma excelente monografia da autoria de João Maurício Brás, intitulada O Pensamento Insuportável de Émile Cioran.[3] A paixão permaneceu intacta e a verdade é que sempre acalentei o desejo de escrever alguma coisa sobre Cioran. Na altura não sabia exactamente o quê, porventura algum ensaio académico. Nunca deixei de dialogar com Cioran, mas só muito mais tarde voltei a ele de forma mais profunda: traduzi a obra Confissões e Anátemas e creio até que esse regresso terá influenciado decisivamente alguns dos meus trabalhos mais recentes em termos literários: Breviário Clandestino das Extravagâncias e Súmula das Aporias (os dois últimos volumes de Magma, um políptico que será publicado em 2022 na Abysmo). Quando estava a traduzir essa obra, não parava de dizer para comigo que iria escrever alguma coisa sobre o Cioran, embora não soubesse em que moldes.
EMCioran/Br: “Só nos resta escrever; escrevamos, pois” – a frase inaugural do seu livro não poderia ser mais oportuna, evocando certa concepção blanchotiana da escrita como um trabalho infinito, sem começo nem fim; a “obra” como um objeto sempre inacabado, e inacabável… Seria a escrita um doce veneno, uma errância salutar, um desastre irresistível?
R.G.S.: Agradam-me muito essas formulações, porque, para além de belas, são certeiras. Sim, quis que o incipit do livro dialogasse com a sua coda e que esta fosse o espelho invertido da abertura. Quando, no fim do livro, recupero o seguinte passo de A Tentação de Existir: “trata-se de escrever, não é verdade? Pois escrevamos…, enganemo-nos uns aos outros”, o que procuro fazer é conferir a coerência possível a um livro que, em boa verdade, é eminentemente fragmentário e, portanto, sem fio de Ariadne que o conduza de uma ponta à outra. Ao fazê-lo, não deixei de introduzir, todavia, uma nota cioraniana, irónica e deceptiva, que operasse uma espécie de desconstrução da sua promessa de sentido. Sim, escrevemos sempre, não podemos deixar de escrever. Mas como e a que preço? Creio que não estarei muito equivocado se disser que, em tudo o que escrevo, está sempre presente uma reflexão mais abrangente sobre o acto de escrever. Também neste opúsculo está presente esse pendor auto-reflexivo. Esse será, porventura, a pedra de toque de todo o meu labor ensaístico e poético. Escrever: porquê e como? Como começar? No capítulo inaugural de O claro enigma da matéria (Lisboa: Abysmo, 2022), que é um ensaio sobre W. Szymborka, debruço-me justamente sobre a dificuldade que é começar. A poetiza polaca tem um poema fantástico, em que nos confidencia que “cada início/é só continuação,/e o livro das ocorrências/está sempre aberto ao meio.”[4] O início encerra sempre um perpétuo recomeço, o trabalho infinito de que nos fala Blanchot, sendo que, por outro lado, a ruína da obra marca, de forma indelével, a sensibilidade fragmentária de Cioran. Neste sentido, todo o texto não pode senão trair as suas próprias promessas. É dessa inevitável traição que se faz o precário e precioso sentido a que podemos ter acesso. A leitura alimenta-se desse delicado milagre. Por sua vez, a escrita será sempre essa espécie de sedução amaldiçoada. Blanchot é, de facto, uma figura que comparece neste opúsculo, sobretudo pela tematização que faz da ideia de inacabamento e do trabalho infinito, mas também da noção de desastre (dis-astrum), remetendo para um tipo de escrita que ficou órfã do seu astro, que se viu usurpada da sua estrela-guia.
EMCioran/Br: Permita-me citar uma passagem de Derrida, logo no início da sua Farmácia de Platão:
Seria preciso, pois, num só gesto, mas desdobrado, ler e escrever. E aquele que não tivesse compreendido nada do jogo sentir-se-ia, de repente, autorizado a lhe acrescentar, ou seja, acrescentar não importa o quê. Ele não acrescentaria nada, a costura não se manteria. Reciprocamente, aquele que a “prudência metodológica”, as “normas de objetividade” e os “baluartes do saber” impedissem de pôr aí algo de si também não leria. Mesma tolice, mesma esterilidade do “não sério” e do “sério”. O suplemento de leitura ou de escritura deve ser rigorosamente prescrito, mas pela necessidade de um jogo, signo ao qual é preciso outorgar o sistema de todos os seus poderes.”[5]
Tendo em mente esta prescrição, eu perguntaria: que dificuldades, riscos, desafios, você enfrentou no processo crítico-criativo de abordar uma “obra” tão paradoxal como a de Cioran? E para enunciar uma questão colocada em uma das suas Notas Soltas: “Como responder ao repto deste apátrida do sentido (um ‘escritor extraterritorial’, segundo você, a partir da caracterização celebrizada por Steiner), à tempestade das suas palavras? Porquê fazer proliferar a metástase do comentário? Não seria preferível deixar a obra intacta, à mercê do seu silêncio imperiosamente loquaz?” (RGS 2022: 6)
R.G.S.: Estou plenamente ciente do risco que corri ao escolher uma via um pouco mais heterodoxa. Em obras anteriores (como A Sabedoria da Incerteza, 2015, ou Poéticas da Incompletude, 2017), a minha abordagem a objectos literários e filosóficos foi, de facto mais convencional e académica, mas, ao confrontar-me com a forma mentis de Cioran, senti que tinha de optar por algo diferente e esta pareceu-me a abordagem que melhor serviria os solavancos do seu pensamento antinómico. Procurei respeitar a complexidade desta “obra” (e faz todo o sentido que se coloque entre aspas esse lexema, uma vez que o próprio Cioran sublinhou, em diversas circunstâncias, a sua desconfiança face à edificação de um pensamento sistemático e inexpugnável) e daí as diferentes tipologias textuais que adoptei: oscilando sobretudo entre passagens mais ensaísticas e passos mais aforístico. É um livro que, embora inclua uma bibliografia final e diversas notas-de-rodapé, prima pelo um fluxo descontínuo, assumindo um pendor fragmentário. O subtítulo – “Notas soltas para Cioran” – visa enfatizar um tal pendor, aludindo igualmente ao singelo desejo de homenagem que pretendi expressar. A verdade é que, até bem recentemente, o que imperou foi a sensatez de deixar a obra intacta, inconspurcada pela tirania do comentário. Mas se, como diz Manuel Gusmão, todas as formas em que se formula o discurso crítico mais não são do que “maneiras de falar alto no escuro”, a verdade é que, em virtude do irrecusável apelo que algumas obras exercem, não podemos deixar de professar o desejo de encetar uma conversa ininterrupta com essas mesmas obras. No meu caso, havia uma dívida de amor que tinha de ser saldada e este pequeno livro foi a forma arriscada que encontrei para aceitar o repto do mestre da desilusão.
EMCioran/Br: Em 2011 foi organizado, na Universidade do Porto, um Encontro Pessoa/Cioran: nos 76 anos da morte de Pessoa e nos 100 anos do nascimento de Cioran. As aproximações entre o escritor francês de origem romena e o poeta português são inevitáveis, e sempre oportunas. Você fala de uma afinidade electiva entre os dois, “nas isotopias e na cosmovisão que ambos exploram”, e reconhece neles “um negrume que tinge o pensamento e que nasce de uma clarividência implacável.” (RGS 2022: 19-20). A propósito, Pessoa (Bernardo Soares) escreveu, no Livro do Desassossego:
Ditosos os fazedores de sistemas pessimistas! Não só se amparam de ter feito qualquer coisa, como também se alegram do explicado, e se incluem na dor universal.
Eu não me queixo pelo mundo. Não protesto em nome do universo. Não sou pessimista. Sofro e queixo-me, mas não sei se o que há de geral é o sofrimento nem sei se é humano sofrer. Que me importa saber se isso é certo ou não?
Eu sofro, não sei se merecidamente. (Corça perseguida.)
Eu não sou pessimista, sou triste.[6]
Seria também o caso de Cioran? Aliás, eu gostaria de evocar aqui uma terceira figura, feminina, uma escritora brasileira, mas nascida na Ucrânia: Clarice Lispector. Você trata da literatura de Lispector em A sabedoria da incerteza: imaginação literária e a poética da obrigação (Húmus, 2015).[7] Que afinidades haveria entre essas três figuras e suas respectivas obras?
R.G.S.: Essa é uma questão imensa a que eu certamente não saberei responder de forma minimamente adequada. São três autores paradoxais, são universos mentais profundamente contraditórios, todos eles lançando um manto de suspeição sobre a própria ideia de obra e sobre a insuficiência da palavra para testemunhar o nosso desamparo ontológico e a nobreza da nossa mortalidade. Os sujeitos plurais que decorrem dessa escrita e desse pensamento multifacetados são sujeitos dilacerados e nomádicos, irónicos, passivos, inconformados, abúlicos, agónicos, altivos e intrépidos… A relação entre Pessoa e Cioran é, por assim dizer, mais directa e está razoavelmente bem documentada.[8] Em relação a Lispector, a questão é um pouco mais problemática, mas creio que há pontos de contacto. Se pensarmos em Cioran e Lispector, por exemplo, pressinto que a percepção de que a escrita é uma “maldição que salva” provém do mesmo solo sombrio, do mesmo abismo inconfessável. A crise que se abate sobre o acto de escrita como que espelha a aguda crise que acomete o sujeito e a sua conturbada relação com o mundo. Na crónica “O grito”, Lispector confessa-se de forma desassombrada: “O que farei de mim? Quase nada. Não vou escrever mais livros. Porque se escrevesse diria minhas verdades tão duras que seriam difíceis de serem suportadas por mim e pelos outros. Há limite de se ser. Já cheguei a esse limite.”[9] É uma inquietude cortante, um assombro interior que se confunde com um triunfal sentimento de fracasso que também vislumbro em Pessoa e em Cioran. Seja como for, tanto quanto posso avaliar, a cosmovisão lispectoriana parece-me bastante mais solar, quando comparada com o negrume da mundividência, perfilhada por Cioran e Pessoa.
EMCioran/Br: Cioran, que amava o tango argentino e o fado português (especialmente pela voz de Amália Rodrigues), gostava de lembrar que o seu idioma materno é um dos poucos que têm um equivalente à nossa saudade e ao Sehnsucht alemão: o dor romeno. Uma sugestiva transferência semântica de uma língua à outra, e uma “feliz” coincidência, a julgar pelo que exprimem os dois grafemas (“saudade”, “dor”), por sua contiguidade na cartografia dos afetos da língua portuguesa, você não acha? A afinidade electiva entre Cioran e Pessoa não passaria por certa nostalgia de algo inexistente ou, em todo caso, indisponível, inacessível, um absoluto, um “paraíso perdido”?
R.G.S.: Sim, é uma coincidência absolutamente deliciosa e repleta de simbolismo. Creio que é na entrevista concedida a Sylvie Jaudeau que Cioran faz essa aproximação.[10] O facto de ela surgir no decurso da sua reflexão sobre o paradoxo que a música encerra (como um modo de eternidade entrevista no tempo) só contribui para adensar esse simbolismo. E é curioso que utilize a expressão “paraíso perdido”, já que a mesma aponta para a noção de queda que informa o quadro mental da escrita de Cioran. Eu refiro esse aspecto no livro e creio que o exílio é uma das palavras-chave do pensamento cioraniano. A tragédia capital, para Cioran, seria justamente essa queda no ser e no tempo, a inescapabilidade da existência, pois. E essa é uma intuição que vai ao arrepio das nossas convicções mais profundas, mesmo no que toca a uma certa concepção darwiniana de se estar ligado à vida, a lutar pela sobrevivência, pelo perseverar no ser. Cioran questiona veementemente o primado dessa ideia, opondo-lhe de uma forma que me parece profundamente cómica (muitas vezes essa é uma dimensão olvidada na sua escrita), a ideia de uma inconveniência de se ter nascido. A existência, para Cioran, oscila sempre nessa delicada tensão entre, por um lado, se assumir como uma tragédia incomensurável e, por outro lado, ser perspectivada como um leve aborrecimento, como um tédio que se tem de suportar… Mas trata-se sempre (como também em Pessoa) de um enquadramento muito específico: de uma teologia sem teologia, uma espécie de reflexão intersticial e nómada que surge quando o niilismo se cruza com um certo misticismo de contornos indefinidos. O que brota de uma tal reflexão é a tal nostalgia intangível de que fala, a fome de um absoluto incompulsável, que se poderia aproximar do sentido do mistério da relação do homem com aquilo que Rudolf Otto apelida de “numinoso”, desse mysterium tremendum que não pode deixar de assaltar quem se aproxima do transcendente.
EMCioran/Br: Você é um estudioso da obra de George Steiner, a quem dedicou um livro: Iminência do Encontro (2009). Sabe-se que Steiner escreveu coisas duríssimas sobre Cioran. Como você avalia a crítica devastadora que ele faz em seu ensaio “Curto prazo final”, à obra de Cioran, mais especificamente a Écartèlement (Drawn & Quartered na versão inglesa de Richard Howard)? Você não acha que ela vai no mesmo sentido da acusação de Sartre contra Camus, de que o autor d’A peste “odiava Deus mais do que odiava os nazistas”, e que estes “nunca realmente contaram no mundo de Camus”? Para Susan Neiman (no contexto de uma discussão sobre o problema filosófico do mal no século XX), a crítica de Sartre não carece de fundamento (e o mesmo se poderia dizer da crítica de Steiner a Cioran), pois, segundo ela, “a metáfora de Camus beira a irresponsabilidade involuntária. […] A discussão sobre os males morais e naturais feita por Camus, no entanto, era resultado não de uma confusão conceitual, mas sim de uma afirmação consciente. Tanto os males morais quanto os naturais são casos especiais de algo pior: o mal metafísico inerente à condição humana.”[11] Isso nos remete à controvérsia em torno da função social do escritor, do artista, do intelectual moderno, o seu papel enquanto figura pública comprometida e solidária com a sua época, tema, aliás, de La morale dans l’écriture: Camus, Char, Cioran, de Michel Jarrety.[12] A julgar por uma de suas Notas,[13] estamos diante de um caso excepcional de désoeuvrement: a “anti-obra” desse que aspirou voluptuosamente à “santidade do ócio”, a ser “mais inutilizável que um santo”… Como você concebe a relação, em Cioran, entre a poética do desastre e certa metafísica do fracasso? Seria a “generosidade do fel” a sua contribuição numa época dominada pela auto-ajuda, pela angelismo new age e otimismos afins?
R.G.S.: Confesso que a obra steineriana sempre me fascinou. Iminência do Encontro constitui justamente o resultado de um aturado diálogo com o mestre de Cambridge. Todavia, já em Iminência do Encontro eu procurava interrogar a hermenêutica da transcendência, socorrendo-me da hermenêutica radical, protagonizada pelo filósofo norte-americano John Caputo. Mas, respondendo directamente à sua pergunta, a apreciação steineriana em relação a Cioran parece-me francamente injusta e algo estranha, uma vez que o próprio Steiner começa esse texto[14] por confessar abertamente as afinidades electivas que sente relativamente ao pessimismo filosófico que o sermão fúnebre de Cioran efectivamente encerra: “Na verdade, o meu próprio instinto não aponta para direcções muito mais animadoras.” Como assinala Robert Boyers na introdução ao volume George Steiner at the New Yorker, que inclui esse texto sobre Cioran, a resistência do autor de Gramáticas da Criação prender-se-ia com um brutal excesso de simplificação num escritor que havia dado mostras de uma capacidade de fina ironia e de uma grande subtileza estilística. É tanto mais estranho quanto uma das principais acusações movidas a Steiner foi justamente a de um excesso de simplificação argumentativa e teórica, patente num certo ensaísmo impressionista e num excessivo e dogmático negrume que tinge o seu pensamento (penso designadamente em obras perpassadas de um pessimismo filosófico como A Morte da Tragédia, 1961, Linguagem e Silêncio, 1967 e No Castelo do Barba Azul, 1971). De resto, a acusação, segundo a qual Cioran estaria fascinado pelo seu tom oracular, foi também uma acusação que foi movida ao próprio Steiner. E Steiner sempre respondia (e creio que com propriedade) que, no que diz respeito à indagação humanística, a teoria não é senão uma intuição impaciente.[15] No texto em apreço, Steiner valoriza Minima Moralia de Adorno em detrimento da obra recenseada – Écartèlement (1979), mas esta é, a meu ver, uma obra não menos seminal, repleta de fulgurações desarmantes e de um comovente lirismo. Queria reiterar este ponto: para além de um pensador poderoso (e não um mero epígono de Nietzsche, como alguns quiseram fazer crer), Cioran foi um escritor absolutamente excepcional. Quando Cioran escreve: “Sou tão triste e tão feliz que as minhas lágrimas reflectem o céu e o inferno com a mesma precisão”, não é apenas o pensador que está a tentar domar e a ser subjugado pela linguagem; é também o poeta rendendo-se à alquimia do verbo. Sobre a segunda parte da sua questão, estou totalmente de acordo. Creio mesmo que a reivindicação de uma função moral do escritor não poderia estar mais longe da postura cioraniana. Cioran é muito claro a esse respeito. A fazer fé nas suas declarações, a escrita era tão-só um modo de ele poder formular um pouco melhor as suas obsessões, uma terapêutica meramente individual, portanto. Um pensamento que não inspirasse seguidores e que apenas fosse fruto de uma solidão indizível e intransmissível. Esse era o seu desiderato. Nesse sentido, creio que podemos olhar para a obra cioraniana como um precioso manual de anti-ajuda, um catálogo de intuições que exibem a ousadia de celebrar a metafísica do fracasso por oposição ao pueril culto do sucesso que marca indelevelmente a nossa era do vazio, para recuperar a terminologia de Lipovetsky. E, no entanto, apesar de inegociavelmente à margem dos ditames infantilmente optimistas da nossa época, não tenho dúvidas de que ele continuará a ser lido por espíritos que a ele electivamente se irmanam. Porquê? Porque, no fundo, Cioran foi um exímio sedutor: alguém que levou a radicalidade do pensamento ao seu limite, alguém que foi implacável com tudo, começando por ele próprio. Mas quem se atreve a ler este anti-filósofo, sabe que da descida aos infernos é sempre possível extrair uma dura lição de luz – a isso poderíamos chamar lucidez. Os seus leitores sabem do que falo. Cioran di-lo melhor: “Uma pessoa pode se dizer niilista e, no entanto, se apaixonar como o maior dos idiotas.”